Família e suas crianças s e adolescentes

Autor: Rachel Niskier 
Médica pediatra do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), coordenadora do Núcleo de Apoio aos Profissionais que atendem crianças e adolescentes vítimas de Violência – NAP/IFF, membro do Departamento de Adolescência da Sociedade de Pediatria do Rio de Janeiro – SOPERJ.

 

Pais amorosos, pelo senso comum, que usam o tapa ou qualquer outro tipo de violência física e/ou psicológica como instrumento pedagógico na criação de seus filhos estão desinformados. É preciso tomar cuidado com certas verdades” estabelecidas, mesmo que passadas de geração a geração. Desconheço algum trabalho, assinado por especialista em puericultura seja pediatra ou da área da saúde mental, que prove que crianças que apanharam tornaram-se adultos mais felizes e realizados. O inverso, no entanto, está fartamente atestado.

Pesquisas científicas desenvolvidas em vários países das Américas e Europa atestam, à saciedade, os malefícios na vida dos que, na infância, sofreram castigos físicos e/ou psicológicos. Especialistas que se dedicam à questão da violência contra crianças e adolescentes já comprovaram, com base em estudos clínicos, que crianças vítimas de maus-tratos carregam, pela vida afora, males os mais diversos, destacando-se, contudo: terrores, comportamentos desafiadores, depressão, angústia, estresse, medo e outros.

Em relação aos danos oriundos da agressão física, a meta-análise de 5 décadas de pesquisa realizada por 30 autoridades mundiais em saúde pública com mais de 160.000 crianças, demonstrou que quanto mais as crianças eram agredidas, mais elas desafiavam seus pais e apresentavam comportamento antissocial crescente, agressividade, problemas de saúde mental e dificuldades cognitivas. (The Lancet 2013; publicado em site de 09/05/2016).

Lamentavelmente, nos consultórios e serviços de saúde, atendemos, cotidianamente, casos de violência cometida contra crianças e adolescentes no âmbito das relações familiares. Há, evidentemente, inúmeros fatores predisponentes, mas não uma relação obrigatória de causa e efeito, isto é, pais que apanharam na infância não necessariamente serão adultos  que replicarão o modelo agressor.

Observa-se que ao longo de anos, instituições que representam segmentos organizados da sociedade civil dedicaram-se a combater o hábito de utilizar as agressões  como ferramenta educacional, tema que, em virtude das suas repercussões na vida dos cidadãos que sofreram ou estão a ser submetidos a abusos, tornou-se um item tangível na agenda social do país.

O direito, que muitos adultos acreditam ter, de castigar crianças, tanto física quanto psicologicamente, estrutura-se no discurso de que a criança apanha porque merece. Isso leva a vítima a acreditar que é merecedora de maus-tratos. Da palmada, que nada mais é do que uma pancada, à tortura de ser seviciada com uma colher em brasa, o caminho pode ser, muitas vezes, mais curto do que parece.

Quando uma criança externa que apanha porque merece, está expondo indesejável sintoma de baixa autoestima, que pode comprometer sua plenitude ao chegar à idade adulta.

Em 1979, quando o Estado sueco decidiu extirpar os maus-tratos físicos e psicológicos do dia a dia das crianças, a iniciativa causou estranheza, na medida em que, por força de uma cultura adultocêntrica, pais e mães imaginavam-se proprietários dos filhos, deles podendo dispor como melhor lhes conviesse no processo educacional.

Hoje, 38 países, incluindo o Brasil, seguindo as recomendações do Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, modernizaram seus diplomas legais voltados para a proteção de crianças e adolescentes, a fim de eliminar o castigo físico e humilhante de crianças, criando normativas que proíbem a conduta violenta na criação dos filhos.

Garantir essa salvaguarda constitucional é primordial para quem trabalha com essa faixa etária. E não apenas para possibilitar, mediante a oferta de campanhas de esclarecimento permanentes e programas de capacitação de profissionais das áreas de saúde, educação e direitos humanos, mas também a transformação de um ambiente e de uma cultura anacrônica, palmatorial.

É do conhecimento público que extinguir o hábito de adultos baterem em crianças em virtude de um momento de desequilíbrio emocional é o caminho mais curto para reduzir a agressividade que está a caracterizar a sociedade brasileira.

Crianças e adolescentes são, como qualquer outra pessoa, sujeitos de direito. É bom lembrar que até os animais irracionais, protegidos desde a década de 1930 por diploma federal, têm o direito de serem orientados com atenção, o que não significa, do ponto de vista educacional, abrir mão de rigor e método nas relações familiares e escolares.

Educar exige não apenas paciência, mas, também, apego aos bens maiores do humanismo. A lei Menino Bernardo sancionada pela Presidência  da República, é clara tentativa de desqualificar a questão dos maus-tratos como forma de educar, não vai transformar as relações entre pais e filhos, entre adultos e crianças, por um passe de mágica. Mas uma vez aprovada e sancionada ,  implementada pelo Estado, se consolidará como  instrumento de profunda transformação. E será consagrado como a lei que veio, enfim, para educar.

Sendo a infância e a adolescência etapas da vida marcadas por importantes modificações orgânicas e psicossociais, é fundamental o reconhecimento da articulação do desenvolvimento humano com os contextos sociais, culturais e históricos. É uma época de maior vulnerabilidade aos riscos das mais variadas espécies. É o momento da estruturação do corpo e personalidade de crianças e adolescentes.

A família, em suas várias configurações, é o local privilegiado para oferecer apoio, afeto e limites à sua prole. É da família que são transmitidos valores, hábitos, modos de vida, cultura e empatia, que é imaginar-se no lugar do outro.

“A família representa, talvez, a forma de relação mais completa e de ação mais profunda sobre a pessoa humana, dada a enorme carga emocional das relações entre seus membros” (Rey e Martinez).

A sociedade brasileira tem a oportunidade de contar com a colaboração dos segmentos ligados à infância e adolescência nas mais diversas áreas. A lei Menino Bernardo veio para contribuir na difícil, mas possível, tarefa de educar sem castigos físicos e tratamento humilhante.

A palavra é leve como o vento e tem a força da te
mpestade (Victor Hugo) – cuidar da infância e da adolescência é tarefa de todos.

Abril / 2019

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