Conceito e Histórico
A terapia gênica representa um avanço revolucionário na medicina moderna, oferecendo possibilidades de tratamento. Esta abordagem terapêutica consiste na introdução de material gênico funcional em células específicas para corrigir defeitos genéticos, substituir genes ausentes ou modular a expressão gênica patológica. O desenvolvimento dessa tecnologia teve como marco fundamental a descoberta da estrutura do DNA por Watson e Crick na década de 1950, seguida pelo advento das técnicas de DNA recombinante nos anos 1980.
Existem duas estratégias principais de terapia gênica. A abordagem ex vivo envolve a coleta de células do paciente, sua modificação genética em laboratório e posterior reinfusão, sendo amplamente utilizada em terapias como as células CAR-T para tratamento de câncer. Já a técnica in vivo consiste na administração direta de vetores contendo o material genético terapêutico no organismo do paciente, como no caso do Luxturna® para tratamento de distrofias retinianas.
Os vetores virais são os sistemas de entrega mais utilizados, destacando-se os vírus adeno-associados (AAVs) por sua segurança e eficiência, como no Zolgensma® para atrofia muscular espinhal. Os lentivírus, que permitem integração estável no genoma, são empregados em terapias como o Zynteglo® para beta-talassemia. Técnicas de edição genômica, particularmente o sistema CRISPR-Cas9, revolucionaram o campo ao permitir correções precisas no DNA, com aplicações promissoras em doenças como anemia falciforme e distrofia muscular de Duchenne.
As aplicações clínicas já aprovadas incluem tratamentos transformadores para doenças antes consideradas intratáveis. Na área de doenças monogênicas, o Hemgenix® demonstrou eficácia na produção sustentada do fator IX em pacientes com hemofilia B. Em oncologia, as terapias CAR-T como Kymriah® e Yescarta® apresentaram resultados impressionantes em leucemias e linfomas refratários. Para doenças multifatoriais, diversos ensaios clínicos estão em andamento, investigando abordagens para Alzheimer e doenças cardiovasculares.
Apesar do progresso, a terapia gênica enfrenta desafios significativos. Questões de segurança, como o risco de mutagênese insercional e respostas imunes aos vetores, continuam sendo objeto de intensa pesquisa. Aspectos éticos, particularmente sobre a edição germinativa, permanecem como tópicos de debate na comunidade científica. Além disso, o alto custo dessas terapias, muitas vezes ultrapassando milhões de dólares por tratamento, limita seu acesso e disponibilidade.
No Brasil, a ANVISA já aprovou diversas terapias gênicas, incluindo tratamentos para distrofias retinianas, atrofia muscular espinhal, distrofia muscular de Duchene e neoplasias hematológicas. Contudo, o acesso ainda é limitado e muitas terapias inovadoras disponíveis em outros países ainda não foram incorporadas ao nosso sistema de saúde.
Em conclusão, a terapia gênica estabeleceu-se como uma modalidade terapêutica transformadora, com potencial para modificar radicalmente o tratamento de diversas condições médicas. À medida que a tecnologia avança e novos desafios são superados, os profissionais de saúde devem manter-se atualizados sobre essas inovações, preparando-se para integrá-las na prática clínica de forma segura e eficaz. O futuro da medicina genômica promete não apenas tratar sintomas, mas oferecer terapias com respostas definitivas para muitas doenças até recentemente consideradas incuráveis.
Seguem exemplos de forma resumida para o público médico:
Estratégias e Vetores
- Abordagens:
- Ex vivo: Células do paciente são editadas in vitro e reinfundidas (ex.: terapia CAR-T).
- In vivo: Vetores administrados diretamente no organismo (ex.: AAVs para doenças retinianas).
- Vetores mais utilizados:
- Retrovírus/Lentivírus: Integração estável no genoma (ex.: Zynteglo® para beta-talassemia).
- Adenovírus (AdV): Alta capacidade de carga genética, mas risco de resposta imune.
- Vírus Adeno-Associados (AAVs): Seguros, porém com limitação no tamanho do gene carregado (ex.: Luxturna®, Zolgensma®).
- Não virais: Lipossomos e nanopartículas (menor eficiência, mas menos imunogênicos).
Técnicas de Edição Gênica
- CRISPR-Cas9: Edição precisa de genes, com aplicações em:
- Anemia falciforme (ensaios clínicos em andamento).
- HIV (excisão do DNA viral integrado).
- Distrofia muscular de Duchenne (DMD):
- Elevidys® (delandistrogene moxeparvovec): Aprovado nos EUA (2023), Brasil (2025), usa AAVrh74 para entregar um gene de microdistrofina funcional.
- Ensaios com CRISPR: Edição do gene DMD para restaurar a produção de distrofina.
- Silenciamento gênico: siRNA (ex.: Patisiran para amiloidose hereditária) e oligonucleotídeos antisense (ex.: Eteplirsen para DMD).
Aplicações Clínicas Aprovadas e em Estudo
- Doenças Monogênicas
- Atrofia Muscular Espinhal (AME): Zolgensma® (onasemnogene abeparvovec), terapia genética com AAV9 em dose única.
- Hemofilia B: Hemgenix® (etranacogene dezaparvovec), AAV5 para expressão do fator IX.
- Amaurose de Leber (LCA2): Luxturna® (voretigene neparvovec), AAV2 para gene RPE65.
- Beta-Talassemia: Zynteglo® (betibeglogene autotemcel), terapia ex vivo com lentivírus.
- Oncologia
- Terapia CAR-T:
- Kymriah® (tisagenlecleucel): Para LLA-B e linfoma difuso de grandes células B (LDLGB).
- Yescarta® (axicabtagene ciloleucel) e Carvykti® (ciltacabtagene autoleucel): Para mieloma múltiplo.
- Vírus oncolíticos: T-VEC (talimogene laherparepvec) para melanoma avançado.
- Terapia CAR-T:
- Distrofia Muscular de Duchenne (DMD)
- Elevidys®: Primeira terapia gênica aprovada (FDA 2023, ANVISA 2025), com AAVrh74 para microdistrofina.
- Terapias em investigação:
- CRISPR-Cas9 para excisão de éxons mutados (ensaios pré-clínicos promissores).
- Oligonucleotídeos antisense (ex.: Golodirsen, Viltolarsen) para pular éxons e restaurar a leitura do gene DMD.
- Doenças Multifatoriais
- Hipercolesterolemia familiar: Ensaios com CRISPR para editar PCSK9 ou LDLR.
- Doença de Alzheimer: Vetores AAV para entrega de genes neuroprotetores (ex.: BDNF).
Desafios e Riscos
- Efeitos adversos:
- Respostas imunes a vetores (ex.: hepatotoxicidade com AAVs, toxicidade cardíaca);
- Uso de corticosteróides a longo prazo;
- Atenção para vacinação pre-infusão;
- Mutagênese insercional (leucemia em terapia para SCID-X1);
- Ética: Edição germinativa e disparidades no acesso (muito alto custo);
- Limitações técnicas:
- Dificuldade em atingir tecidos específicos (ex.: cérebro, músculo esquelético);
- Poucos Centros de referência no Brasil com equipe multiprofissional e multidisciplinar para monitoramento a longo prazo
Cenário no Brasil
A ANVISA aprovou:
- Luxturna® (2020) – LCA2.
- Zolgensma® (2022) – AME.
- Kymriah®, Yescarta®, Carvykti® (2022–2023) – Linfomas e mieloma.
- Roctavian® (2023) – Hemofilia A (*AAV5-F8*).
- Elevidys® (2025) – (DMD) – Alguns pacientes brasileiros já utilizaram em serviços de referência como IFF-FioCruz.
Conclusão
A terapia gênica representa um paradigma terapêutico com “potencial curativo” para doenças genéticas e câncer. No entanto, desafios como segurança, custo e entrega eficiente persistem, como por exemplo efetividade a longo prazo. Alguns pacientes que receberam TG após cinco anos de terapia podem apresentar sinais e sintomas da doença. Médicos devem estar atentos a:
- Novas aprovações;
- Critérios de elegibilidade (idade, estágio da doença);
- Monitoramento de efeitos tardios (ex.: carcinogênese, perda de efetividade).
Autores: Tatiana de Sá Pacheco Carneiro de Magalhães
Anna Cláudia Evangelista dos Santos
Dafne Dain Gandelman Horovitz
Daniela Koeller Rodrigues Vieira
Isaias Soares de Paiva
Raquel Tavares Boy da Silva
Referências-chave: FDA/ANVISA, ensaios no ClinicalTrials.gov, revisões sobre CRISPR e CAR-T (Nature Reviews Drug Discovery, NEJM).
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