Autores: Cássia Freire Vaz, Mestre em saúde materno infantil pela UFRJ, Professora da Faculdade de Medicina da UFRJ, Gastroenterologista pediátrica do Hospital Universitário
Paula Araujo França Blotta, Pediatra Geral e Gastroenterologista Pediátrica no Hospital Universitário Pedro Ernesto
Os distúrbios gastrointestinais funcionais ou distúrbios da interação cérebro intestino (DICI) são comuns em crianças e adolescentes, são caracterizados por sintomas digestivos recorrentes sem causa estrutural, bioquímica ou inflamatória identificável. São expressões de disfunção na interação cérebro-intestino, envolvendo alterações de motilidade, hipersensibilidade visceral, microbiota intestinal e regulação do sistema nervoso central.
Contudo, o sofrimento emocional da família e do paciente, é igualmente importante quando comparado às outras condições orgânicas, onde temos exames diagnósticos bem estabelecidos.
Devido ausência de marcadores biológicos, o consenso de Roma consolidou o diagnóstico baseado em sintomas, abandonando o conceito de “exclusão de doença orgânica”. Assim, os DGF são reconhecidos após avaliação clínica adequada, quando os sintomas não podem ser atribuídos a outra condição médica.
O tipo mais comum pode variar de acordo com a idade do paciente como mostra a figura abaixo.
DISTÚRBIOS GASTROINTESTINAIS FUNCIONAIS NO LACTENTE E NA CRIANÇA ABAIXO DE 4 ANOS
Os DGF pediátricos são classificados em três grandes grupos:
- Distúrbios funcionais com náuseas e vômitos
- Distúrbios funcionais com dor abdominal
- Distúrbios funcionais da defecação
O padrão alimentar global nos últimos anos apresentou uma mudança crescente de alimentos não processados para minimamente processados, em consequência as alterações comportamentais culturais, aos ambientes alimentares e as influências comerciais nas escolhas alimentares.Os alimentos ultraprocessados, conforme definidos pelo sistema de classificação de alimentos Nova, abrangem uma ampla gama de produtos prontos para consumo, incluindo salgadinhos embalados, refrigerantes, macarrão instantâneo e refeições prontas. Esses produtos são caracterizados como formulações industriais compostas principalmente por substâncias quimicamente modificadas extraídas de alimentos, juntamente com aditivos para realçar o sabor, a textura, a aparência e a durabilidade, com inclusão mínima ou nenhuma de alimentos integrais.Embora a pesquisa mecanicista ainda esteja em fase inicial, evidências emergentes sugerem que tais propriedades podem representar consequências sinérgicas ou combinadas para doenças inflamatórias crônicas e podem atuar por meio de mecanismos fisiológicos conhecidos ou plausíveis, incluindo alterações no microbioma intestinal e aumento da inflamação.Foi então desenvolvido um consenso para auxiliar no diagnóstico dos transtornos gastrointestinais funcionais, inicialmente para os indivíduos adultos, com o objetivo de desenvolver um sistema de classificação baseado em sintomas, estabelecer critérios diagnósticos para pesquisa e assistência. São os critérios de ROMA IV, última atualização até o momento.
- Distúrbios funcionais com náuseas e vômitos
Náusea Funcional e Vômito Funcional
A náusea funcional e o vômito funcional devem ser consideradas entidades distintas, mas, pacientes que sofrem de náusea crônica frequentemente relatam episódios leves de vômitos com frequência variada.Não existem dados disponíveis na literatura para a prevalência destas síndromes, isoladas ou conjuntamente, sendo os critérios diagnósticos descritos no abaixo.
Critérios de náuseas e vômitos funcionais segundo Roma IV
(sintomas há pelo menos 2 meses antes do diagnóstico)
O diagnóstico deve incluir todas as seguintes características para náuseas ou vômitos, respectivamente:
Náuseas funcionais:
- Náuseas incômodas como sintoma predominante, ocorrendo pelo menos 2 vezes/semana e geralmente não relacionadas com
- as refeições
- Não consistentemente associadas com vômitos
- Após avaliação adequada, as náuseas não podem ser totalmente explicadas por outra condição médica
Vômitos funcionais:
- Em média, 1 ou mais episódios de vômitos por semana
- Ausência de vômito autoinduzido ou critérios para transtorno alimentar ou ruminação
- Após avalia ção adequada, o vômito não pode ser totalmente explicado por outra condição médica
Alguns pacientes com estes transtornos também apresentam sintomas autonômicos, tais como: transpiração, tonturas, palidez e taquicardia.Algumas crianças apresentam náusea pela manhã cedo e observam que quando elas “ultrapassam o horário usual de dormir”, não apresentam o período da náusea.A presença de vômitos intensos associados à náusea representa uma situação diferente na qual devem-se excluir enfermidades do sistema nervoso central, anormalidades anatômicas do trato digestivo (por exemplo, malrotação), gastroparesia e pseudo-obstrução intestinal.A avaliação psicológica está indicada neste grupo de pacientes, com intervenção da saúde mental naqueles pacientes que apresentam comorbidades.
Síndrome dos Vômitos Cíclicos (SVC)
Apresenta episódios recorrentes e estereotipados de náuseas intensas e vômitos durando horas a dias, separados por períodos assintomáticos. É um distúrbio do eixo cérebro-intestino, frequentemente associado à enxaqueca e disfunção autonômica.
Critérios diagnósticos para vômitos cíclicos segundo Roma IV
O diagnóstico deve incluir todas as características:
- Ocorrência de dois ou mais períodos de náuseas intensas e incessantes e vômitos paroxísticos, com duração de horas a dias dentro de um período de 6 meses
- Episódios são estereotipados em cada paciente
- Episódios são separados por semanas ou meses, com retorno à saúde inicial entre eles
- Após avaliação clínica adequada, os sintomas não podem ser atribuídos a outra condição
O tratamento profilático depende da idade: ciproeptadina (<5 anos) e amitriptilina (>5 anos) são de primeira linha; propranolol pode ser opção alternativa. Em crises, indica-se hidratação e uso de ondansetrona ou sumatriptana intranasal.
Síndrome de Ruminação
Caracteriza-se por regurgitação repetida de alimentos logo após as refeições, sem esforço de vômito. Envolve contração abdominal voluntária ou inconsciente, aumentando a pressão intragástrica. Fatores psicológicos, como traumas ou ansiedade, são frequentes. O manejo inclui educação familiar, técnicas respiratórias, terapia comportamental e suporte multiprofissional.Critérios diagnósticos para ruminação segundo Roma IVPara o diagnóstico, o paciente deve apresentar todos os itens:
- Regurgitações repetidas com mastigação (ruminação) ou expulsão do alimento que:
- Tem início logo após a ingestão
- Não ocorre durante o sono
- Não é precedido por esforço de vomitar
- Após avaliação adequada, os sintomas não podem ser explicados por nenhuma outra condição clínica
Aerofagia
Consiste em ingestão excessiva de ar, levando a distensão abdominal, eructações e flatulência. É comum em crianças ansiosas ou com deficiência intelectual. O diagnóstico é clínico. A abordagem inclui modificação de hábitos alimentares e terapias comportamentais; o uso de benzodiazepínicos pode ajudar em casos de ansiedade intensa.Critérios diagnósticos para aerofagia segundo Roma IVDeve incluir todos os seguintes critérios:
- Excessiva deglutição de ar
- Distensão abdominal em decorrência do ar intraluminal, que aumenta durante o dia
- Repetitivas eructações ou aumento da flatulência
- Após avaliação apropriada, os sintomas não podem ser explicados por outra condição clínica
- Distúrbios funcionais com dor abdominal
Dispepsia Funcional
A Dispepsia Funcional é um transtorno heterogêneo comumente associado a diferentes distúrbios fisiopatológicos de base com padrões sintomáticos específicos. Neste grupo, estão incluídas anormalidades da função gástrica motora e hipersensibilidade visceral devido a sensibilização central ou periférica. Tem sido demonstrado uma acomodação gástrica prejudicada, determinada pela diminuição da capacidade de relaxamento do estômago, em resposta ao alimento. Os critérios diagnósticos para dispepsia funcional devem cumpridos pelo menos 2 meses antes do diagnóstico e são eles: O diagnóstico deve incluir um ou mais dos seguintes sintomas incômodos pelo menos 4 dias/mês:
- Plenitude pós-prandial
- Saciedade precoce
- Dor epigástrica ou pirose não associada à defecação
- Após avaliação adequada, os sintomas não podem ser explicados por outra condição clínica
Dois subgrupos são adotados na dispepsia funcional: Síndrome do desconforto pós-prandial:
- Plenitude pós-prandial ou saciedade precoce
- Características: inchaço abdominal superior, náuseas pós-prandiais ou eructações excessivas
Síndrome da dor epigástrica:
- Dor ou queimação na região epigástrica
- A algia não é generalizada nem localizada em outras regiões abdominais ou torácicas. Não é aliviada pela defecação ou eliminação de flatos
- Dor aliviada ou induzida com a refeição, mas pode ocorrer durante jejum
Quanto ao tratamento, alguns alimentos podem agravar os sintomas, tais como: cafeína, pimenta e gordura, e agentes anti-inflamatórios não esteroides, os quais devem ser evitados. Fatores psicológicos que podem contribuir para a intensidade dos problemas, devem ser levados em consideração. O uso de medicamentos bloqueadores de ácido, como os antagonistas dos receptores de histamina e inibidores da bomba de próton, pode ser indicado quando a dor for o sintoma predominante.Náusea, flatulência e saciedade precoce são mais difíceis de serem tratados, e nestas circunstâncias pro-cinéticos, tais como a domperidona, podem ser indicados.
Síndrome do Intestino Irritável (SII)
Definida por dor abdominal ≥4 dias/mês, associada a alteração no hábito intestinal (frequência ou consistência das fezes). A dor não desaparece com a resolução da constipação. A fisiopatologia envolve hipersensibilidade retal, disfunção motora e fatores psicossociais. O tratamento inclui educação, manejo de estresse, dieta com restrição de FODMAPs e terapia cognitivo-comportamental. O uso de probióticos e óleo de hortelã-pimenta tem eficácia variável.
Critérios diagnósticos para síndrome do intestino irritável segundo Roma IV
O diagnóstico deve incluir todos os seguintes sintomas:
Dor abdominal pelo menos 4 dias por mês associada a um ou mais dos seguintes fatores:
- Relacionada à defecação
- Uma mudança na frequência das fezes
- Uma mudança na forma (aparência) das fezes
- Em crianças com constipação, a dor não se resolve com a resolução da constipação
- Após avaliação adequada, os sintomas não podem ser explicados por outra condição médica
Enxaqueca Abdominal
Episódios recorrentes de dor abdominal intensa e incapacitante, associados a náusea, vômito, palidez e fotofobia. É considerada uma manifestação do espectro das migrâneas.O tratamento profilático usa ciproeptadina, amitriptilina ou propranolol. Durante as crises, sumatriptana nasal ou valproato podem ser eficazes.
O diagnóstico deve incluir pelo menos 2 vezes todas as seguintes ocorrências:
- Episódios paroxísticos de dor abdominal intensa, periumbilical aguda, mediana ou difusa, com duração de 1 h ou mais (grave e
- angustiante)
- Episódios são separados por meses
- Dor incapacitante e que interfere nas atividades normais
- Padrões e sintomas estereotipados
- Dor associada a dois ou mais dos seguintes achados: anorexia, náuseas, vômito, dor de cabeça, fotofobia, palidez
- Após avaliação clínica, os sintomas não podem ser explicados por outra condição médica
Dor Abdominal Funcional Não Especificada (FAP-NOS)
Quando os critérios de outras síndromes não são preenchidos, mas há dor recorrente ≥4 vezes/mês. Está fortemente associada a estresse e fatores familiares. O tratamento inclui apoio psicológico, antidepressivos leves, hipnoterapia e terapia cognitivo-comportamental.
Os episódios devem ocorrer pelo menos 4 vezes por mês e incluir todos os critérios
- Dor abdominal episódica ou contínua que não ocorre apenas durante eventos fisiológicos (p. ex., comer, menstruação)
- Critérios insuficientes para síndrome do intestino irritável, dispepsia funcional ou enxaqueca abdominal
Após avaliação apropriada, a dor não pode ser explicada por outra condição médica
Distúrbios funcionais da defecação
Constipação Funcional (CF)
É o DGF mais frequente na pediatria (prevalência ~12–14%). Definida pela presença de ≤2 evacuações por semana, fezes grandes e duras, postura retentiva ou incontinência fecal, por pelo menos 1 mês.O diagnóstico é clínico, sem necessidade de exames na ausência de sinais de alarme.O tratamento inclui educação familiar, rotina evacuatória regular, ingestão adequada de fibras e líquidos e uso de polietilenoglicol como laxante de primeira escolha. O sucesso depende da adesão prolongada e reforço comportamental.
É obrigatória a inclusão de dois ou mais dos seguintes critérios por pelo menos 1 vez por mês em um período de pelo menos 1 mês, sendo excluído o diagnóstico de síndrome do intestino irritável:
- Duas ou menos evacuações no vaso sanitário por semana em uma criança com desenvolvimento correspondente a pelo menos 4 anos de idade
- Pelo menos um episódio de incontinência fecal por semana
- História de postura retentiva ou excessiva retenção fecal intencional
- História de dor abdominal ou movimentos intestinais mais intensos
- Presença de massa retal volumosa no reto
- História de fezes de grande diâmetro, algumas vezes obstruindo o vaso sanitário
- Após avaliação apropriada, os sintomas não podem ser explicados por outra condição médica
Incontinência Fecal Não Retentiva (NFI)
Caracteriza-se por evacuações involuntárias sem retenção fecal. Costuma estar associada a distúrbios emocionais ou eventos traumáticos. O tratamento combina psicoterapia e reeducação comportamental.
- Pelo menos 1 mês de história em crianças com o desenvolvimento correspondente a idade superior a 4 anos que apresentem todos os critérios:
- Defecação em locais inapropriados para o contexto sociocultural
- Nenhuma evidência de retenção fecal
- Após avaliação apropriada, a incontinência fecal não pode ser explicada por outra condição clínica
TRATAMENTO ALIMENTAÇÃO
Não há evidências suficientes para apoiar o uso de uma dieta com baixo teor de FODMAP em crianças e adolescentes com DGIFs. No entanto, esses planos alimentares podem oferecer algum benefício no alívio da dor abdominal em algumas crianças com SII ou DP.Além disso, a dieta sem glúten não deve ser recomendada para melhorar a dor abdominal em crianças e adolescentes com DGIFs, visto que estudos atuais não demonstram efeitos. A dieta sem glúten parece promissora como abordagem terapêutica em pacientes com SII, embora os resultados sejam provenientes de apenas um estudo.De modo geral, as evidências atuais não oferecem um histórico sólido para a elaboração de recomendações firmes sobre padrões alimentares específicos que crianças e adolescentes com DGIFs possam seguir para melhorar seus sintomas ou outros desfechos gastrointestinais. Estudos de intervenção futuros bem delineados são necessários antes de transferir quaisquer dados disponíveis para a prática clínica.Em relação aos desfechos secundários, Chumpitazi et al. sugeriram que a composição basal do microbioma intestinal e a capacidade metabólica microbiana podem desempenhar um papel na responsividade à dieta. Menor interferência nas atividades diárias também foi observada enquanto as crianças seguiam uma dieta com baixo teor de FODMAPs.O tratamento das doenças funcionais é complexo e deve incluir mudanças no estilo de vida e acompanhamento para identificar os sinais de alerta, o que torna o tratamento individualizado e multiprofissional.

