Colega Pediatra,
A revisão sistemática atualizada da Cochrane (Carson et al., 2025), que analisou limiares transfusionais, fornece dados robustos com implicações diretas para a prática transfusional na clínica pediátrica.
Revisão de paradigmas: O que muda na tomada de decisão transfusional do Pediatra:
- Segurança do Limiar Restritivo (7,0 g/dL a 8,0 g/dL): Os achados demonstram que a adoção de uma estratégia transfusional restritiva, tipicamente definida entre 7,0 g/dL e 8,0 g/dL, em comparação com um limiar liberal (9,0 g/dL a 10,0 g/dL), não compromete negativamente os desfechos clínicos, incluindo a mortalidade em 30 dias, em uma vasta gama de pacientes hospitalizados. Especificamente na população pediátrica, a meta-análise não encontrou nenhuma diferença clara na mortalidade em 30 dias entre as estratégias restritiva e liberal.
- Redução de Riscos: A estratégia restritiva é um componente chave do gerenciamento de sangue do paciente (patient blood management – PBM), pois diminui a exposição a transfusões de concentrado de hemácias (CH) e tem como um dos pilares, o aumento de massa eritrocitária com auxílio de medicamentos como ferro e/ou eritropoetina. Esta redução na exposição transfusional é crucial, uma vez que a política restritiva também diminui significativamente a ocorrência de eventos adversos graves relacionados à transfusão.
A Importância do Contexto Clínico Individual:
É imperativo reconhecer que o nível de hemoglobina (Hb) por si só constitui apenas um marcador substituto (uma surrogate marker) para a necessidade de oxigenação tecidual, a qual não depende somente da Hb, mas também do fluxo sanguíneo e de condições que favoreçam a entrega de oxigênio aos tecidos. A decisão de transfundir deve ser sempre guiada pela avaliação clínica personalizada (medicina de precisão).
- Exceção Neurocrítica: A única população onde a estratégia liberal demonstrou um benefício claro em desfechos a longo prazo (6 a 12 meses) foi a de pacientes neurocríticos com lesões agudas (como trauma craniano e hemorragia subaracnoidea). Nesses casos, a fisiologia cerebral alterada pode comprometer a capacidade de compensação da anemia. Embora este achado se baseie principalmente em ensaios em adultos, ele serve como um alerta essencial para o Pediatra Geral em contextos de Terapia Intensiva Pediátrica (TIP) onde há lesão cerebral aguda.
- Avanços na Avaliação: Diretrizes atuais endossam a necessidade de transfusão com base em sintomas de anemia (como instabilidade hemodinâmica).
Em Síntese, o Paradigma Transfusional:
Conclui-se então que a estratégia restritiva (7,0 g/dL a 8,0 g/dL) deve ser o padrão de cuidado para a maioria dos pacientes pediátricos anêmicos estáveis. No entanto, esta abordagem deve ser vista como uma diretriz baseada em evidências de segurança, e não como uma regra inflexível, devendo sempre ser sobreposta pelo julgamento clínico que considera a fisiologia e a sintomatologia do paciente.
Recomendamos que todos os profissionais se familiarizem com este novo corpo de evidências para otimizar o uso seguro e eficaz dos hemocomponentes em Pediatria.
Referência:
Carson JL, Stanworth SJ, Dennis JA, Fergusson DA, Pagano MB, Roubinian NH, Turgeon AF, Valentine S, Trivella M, Dorée C, Hébert PC. Transfusion thresholds and other strategies for guiding red blood cell transfusion. Cochrane Database Syst Rev. 2025 Oct 20;10(10):CD002042. doi: 10.1002/14651858.CD002042.pub6. PMID: 41114449; PMCID: PMC12536581.
