Elaborado pelos Departamentos Científicos de Nutrologia, Adolescência e Saúde Mental da SOPERJ
Autores: Walter Taan Filho, Denise Garcia de Freitas Machado e Silva e Gabriela Judith Crenzel
O consumo de bebidas alcoólicas na adolescência é um fenômeno de proporções preocupantes. Embora o uso de álcool antes dos 18 anos seja proibido por lei, essa é a substância psicoativa mais utilizada por adolescentes brasileiros, fortemente associada à socialização e à celebração — símbolos de liberdade e maturidade para muitos jovens. No entanto, os efeitos do álcool sobre organismos ainda em formação são amplamente deletérios e merecem atenção redobrada dos profissionais de saúde.
Mais do que um marcador de comportamento social, o consumo precoce de álcool representa um problema de saúde pública. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 2,6 milhões de pessoas morreram em 2019 em decorrência direta ou indireta do consumo de bebidas alcoólicas. No grupo entre 20 e 39 anos, as mortes atribuíveis ao álcool alcançam 13% do total global — reflexo de um padrão de iniciação cada vez mais precoce, muitas vezes ainda na adolescência. No Brasil, o consumo per capita é de 7,7 litros de álcool por ano, e entre os adolescentes que bebem, 43,3% o fazem de forma abusiva.
O impacto do álcool no organismo em desenvolvimento
Após a ingestão, o etanol é rapidamente absorvido pelo intestino delgado e metabolizado principalmente no fígado pela enzima álcool-desidrogenase, que converte o etanol em acetaldeído, composto altamente tóxico para os tecidos. Embora o corpo consiga transformá-lo em ácido acético e excretá-lo, a sobrecarga hepática é inevitável. Em adolescentes, cuja maturação orgânica ainda está em curso, esses processos se tornam potencialmente mais lesivos.
Do ponto de vista nutricional, o álcool fornece calorias sem nutrientes — as chamadas “calorias vazias” — e interfere na absorção e utilização de macro e micronutrientes. O consumo prolongado ou abusivo pode causar desnutrição calórico-proteica e deficiências de vitaminas hidrossolúveis (B1, B2, B3, B6, B9, B12) e lipossolúveis (A, D, K), além de minerais como magnésio, cálcio e zinco.
Essas carências afetam o metabolismo energético, a função neurológica e o sistema imunológico, comprometendo o crescimento e o desenvolvimento físico e cognitivo do adolescente.
Mesmo o uso esporádico pode resultar em alterações cognitivas, comportamentais e emocionais, afetando a aprendizagem, o julgamento e o controle de impulsos. Estudos apontam que quanto mais precoce é o início do consumo, maior é a probabilidade de transtornos por uso de substâncias e persistência do hábito na vida adulta.
Álcool e saúde mental: a espiral de vulnerabilidade
Os efeitos do álcool na saúde mental dos adolescentes são profundos e cumulativos. O etanol compromete a regulação emocional, intensifica sentimentos de tristeza e angústia e está associado a aumento de ansiedade, depressão e ideação suicida. Também prejudica a memória, a atenção e a capacidade de autocontrole — aspectos essenciais para o desenvolvimento psicossocial e acadêmico.
A coexistência entre o uso de álcool e outros transtornos mentais é frequente, configurando uma espiral de vulnerabilidade. Jovens que utilizam álcool de forma regular apresentam maior incidência de sintomas depressivos e baixa autoestima, além de isolamento social e queda no desempenho escolar. O abuso, em especial quando iniciado precocemente, agrava o risco de comportamentos impulsivos, tentativas de suicídio e morte prematura.
Esses achados reforçam a necessidade de uma abordagem abrangente, que envolva as famílias, comunidade, a rede escolar e governo, e tratamento multidisciplinar que envolva pediatras, psiquiatras, psicólogos e nutricionistas, com foco na prevenção e no cuidado integral.
Prevenção: responsabilidade compartilhada
A Lei nº 13.106/2015 altera o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente e estabelece pena de detenção de dois a quatro anos e multa para quem vender, fornecer, servir ou entregar bebida alcoólica a menores de 18 anos.
Apesar da clareza legal, o problema transcende a norma e se instala no campo cultural, onde a banalização do consumo torna o álcool onipresente em celebrações familiares e eventos sociais.
A prevenção deve começar cedo, na infância, e ser fortalecida pela família, escola e serviços de saúde. O diálogo aberto entre pais e filhos, associado a bons exemplos, é uma das estratégias mais eficazes. No âmbito escolar, atividades de educação em saúde, rodas de conversa e o incentivo a práticas esportivas e culturais ajudam a consolidar comportamentos saudáveis.
Entre pares, o protagonismo juvenil — quando adolescentes tornam-se multiplicadores de atitudes positivas — tem mostrado resultados promissores.
A prevenção primária deve valorizar a vida e o bem-estar, substituindo o discurso do medo por mensagens de fortalecimento e autonomia. Já as prevenções secundária e terciária exigem a atuação integrada das equipes de saúde, focando no tratamento, na reinserção social e na construção de redes de apoio.
O papel do pediatra
O pediatra ocupa posição estratégica na prevenção e detecção precoce do uso de álcool entre adolescentes. Sua abordagem deve ser acolhedora, empática e sem julgamento, favorecendo o diálogo e a confiança. A anamnese ampliada, incluindo perguntas sobre hábitos, ambiente familiar e saúde mental, permite identificar sinais precoces de uso e vulnerabilidade.
É essencial que o pediatra participe de ações multiprofissionais e educativas, integrando-se à rede de atenção básica e às escolas. O aconselhamento breve, a orientação nutricional e o acompanhamento psicológico são ferramentas valiosas para reduzir o risco de complicações físicas e emocionais.
Acima de tudo, é preciso lembrar: não existe dose segura de álcool para adolescentes. Cada contato precoce com o etanol representa um potencial dano à saúde e ao desenvolvimento.
Conclusão
A adolescência é uma fase de construção — do corpo, da identidade e das relações. O álcool, embora culturalmente aceito, interfere nesse processo em múltiplas dimensões: nutricional, cerebral, emocional e social.
Cabe aos profissionais de saúde atuar com consciência, empatia e compromisso coletivo, unindo esforços entre famílias, escolas e redes de apoio, para promover o desenvolvimento pleno e saudável de nossos jovens.
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