Reflexões sobre o aumento de situações de violência no contexto da pandemia da COVID-19.
Dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia pela COVID-19 em todo o planeta e as medidas de segurança para conter a transmissibilidade do vírus.
Deste modo, estamos há mais de um ano, apesar de certa flexibilização ao longo do tempo, diante de um cenário onde o distanciamento social, o uso de máscaras, a lavagem de mãos ou uso de álcool em gel, as aulas escolares remotas ou presenciais, os pais com trabalho também remoto ou presencial, ou que ficaram desempregados, perdas de familiares pelo vírus e tantas outras coisas tornaram-se o comum na vida de muitas crianças, adolescentes e suas famílias.
Diante desse cenário complexo temos, como possíveis repercussões, muita angústia, medo e ansiedade frente ao futuro, acarretando o aumento da instabilidade emocional no contexto familiar. Constatamos, neste período, o aumento dos conflitos familiares e o agravamento de situações de violência no cotidiano das relações interpessoais, através do aumento de registros de casos de violência durante a pandemia, potencializando a preocupação com os indícios de aumento da violência doméstica, colocando o ambiente familiar como um lugar de medo e abusos, aumentando os fatores de riscos e diminuindo os fatores de proteção.
Assim, o olhar e a escuta do pediatra, nos consultórios ou unidades de atendimento à saúde, precisam estar mais atentos para essas questões, pois as crianças e adolescentes perderam, neste momento, os recursos de proteção que tinham nas escolas, nas vizinhanças e nos parentes.
Pesquisadores (Marques et al, 2020) em uma breve revisão sobre o assunto nas mídias sociais e internet, perceberam que o aumento da violência contra a mulher e contra a criança e o adolescente durante o período de distanciamento social tem sido observado em diferentes países, tais como China, Reino Unido, Estados Unidos, França e Brasil (com o aumento de denúncias envolvendo violência contra a mulher no Rio de Janeiro, Paraná, Ceará, Pernambuco e São Paulo).
Para maior compreensão do fenômeno das situações de violência devemos utilizar o modelo ecológico das raízes da violência, para refletir sobre os fatores que contribuem para essas questões, pois sabemos que não há um fator único que explique por que algumas pessoas se comportam de forma violenta em relação a outras, ou por que a violência ocorre mais em algumas comunidades do que em outras. A violência é o resultado da complexa interação de fatores individuais, de relacionamentos, sociais, culturais e ambientais. Entender como esses fatores estão relacionados à violência é um dos passos importantes na abordagem de saúde pública para evitar a violência.
Analisando a situação desse momento de pandemia, os pesquisadores descrevem algumas das interações que ocorrem no nível social, como a erosão de suporte social e as questões estruturais relativas à desigualdade de gênero, com o nível comunitário onde ocorre uma maior competição pelos poucos recursos sociais e o funcionamento parcial de serviços de defesa dos direitos de crianças e adolescentes como importantes fatores para o aumento do risco de violências. No nível relacional, os pesquisadores destacam: a sobrecarga de trabalho, o estresse dos pais devido às múltiplas tarefas e ao momento que estamos vivendo, com os comportamentos agressivos ou de desobediência, resultantes das características do momento somadas ao nível individual, que leva crianças e adolescentes a ficarem mais irritadiços pelas restrições de mobilidade e pela falta dos colegas.
Além disso, temos que acrescentar que os pacientes com transtornos mentais preexistentes ficaram mais expostos ao agravamento de seus quadros, também potencializando a dificuldade de lidar com conflitos no contexto familiar.
Os pesquisadores alertam que é preciso aproveitar as experiências já existentes e reforçar o que já vem sendo realizado por instituições governamentais e não governamentais em nosso país, adaptando estas iniciativas à situação específica que estamos vivendo no cenário da COVID-19, como por exemplo, ter acesso ao atendimento 24 horas do Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher), Disque 100 (violação aos direitos humanos) e 190 (Polícia Civil), assim como a manutenção do trabalho dos Conselhos Tutelares (seja por plantão presencial ou via telefone e/ou WhatsApp e/ou outro recurso tecnológico para que as denúncias de violação de direitos sejam realizadas); ter mais agilidade no julgamento das denúncias de violência contra a mulher, com o objetivo de ter a instalação de medidas protetivas de urgência, quando necessárias; realizar campanhas publicitárias com foco de que todos “metam a colher em briga de marido e mulher”, além de alertar para campanhas sobre os diversos tipos de situação de violência contra crianças e adolescentes, lembrando que só ser testemunha de violência doméstica já pode ter graves repercussões na saúde mental infantojuvenil; potencializar as iniciativas de apoio às mulheres, crianças e adolescentes em situação de violência, através do atendimento multidisciplinar composto por: acolhimento e aconselhamento psicológico, socioassistencial, jurídico e de saúde; e quando possível afastar o agressor das possíveis vítimas, buscar uma rede de apoio da confiança das mesmas e, em situações extremas, criar estratégias que as vítimas possam fazer uso em situações de emergência.
Com essas contribuições dos pesquisadores em tornar mais visível esse problema e com essa nota de alerta aos profissionais de saúde que lidam com crianças, adolescentes e suas famílias, esperamos que possamos incorporar estratégias que ajudem na detecção e diminuição das situações de violência com o objetivo de reduzir um dos danos trazidos pela pandemia da COVID-19.
GRUPO DE TRABALHO DE SEGURANÇA E PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA
Presidente: Maria Cristina do Valle F. Serra
Secretária: Adriana Rocha Brito
Membros: Cecy Dunshee de Abranches
Adriana Burla Klajman
Gabriella Lucas Dolavale
Michel Wassersten
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Sociedade Brasileira de Pediatria. Gama MAC, Pfeiffer LY, Departamento Científico de Segurança. 18 de maio – Combate ao abuso e à exploração sexual e outras violências contra crianças e adolescentes em tempo da quarentena por COVID-19. Nota de alerta. 18 de maio de 2020. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/22528b-NA_18maio-_Combate_abuso_sexual_emtempo_COVID-19.pdf; acesso em: 25 jan. 2021.
- Santa Rita ACM, Castro ACG, Roberti BN, Teixeira ID, Menezes LBR de, Tavares MB, et al. Violência infanto-juvenil intrafamiliar e doméstica: o impacto do distanciamento social e a importância da conscientização em meio à pandemia de COVID-19. REAS. 2020; 12(10):e4689.
3. Marques ES, Moraes CL, Hasselmann MH, Deslandes SF, Reichenheim ME. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cad. Saúde Pública. 2020; 36(4):e00074420. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311×00074420; acesso em: 25 jan. 2021.