Amamentação sem data para terminar

Crescem movimentos de mães que defendem o ‘autodesmame’ como estratégia
 

Crianças brasileiras mamam, em média, durante 14 meses, sete a menos do que a Organização Mundial da Saúde considera como o mínimo adequado

Após sua primeira gravidez, a designer gráfica Ana Basaglia interrompeu a amamentação, mesmo contra sua vontade, quando o filho tinha 8 meses — por recomendação do pediatra que os acompanhava. Seu segundo bebê foi desmamado ainda mais cedo, aos 5 meses. Foi apenas na terceira gestação, ao procurar orientações de outro pediatra, que Ana conseguiu estender o aleitamento até os 3 anos de idade de sua caçula, Gabriela. Esta foi a única vez que ela experimentou uma “amamentação plena”, como ela define.

— A única diferença entre esses três momentos foi a informação, ou a falta dela. Em todas as situações, meus filhos tinham condições de mamar, e eu, de amamentar. Não precisava ter parado — pontua Ana, que, após esses episódios, criou a Matrice, um grupo de apoio à amamentação em São Paulo.

A designer faz parte de um movimento que cresce em todo o mundo: o de mulheres que levantam a bandeira de um aleitamento cada vez mais prolongado. E elas têm respaldo dos principais especialistas no tema:

— Não existe data limite [para se amamentar] — enfatiza Elsa Giugliani, presidente do Departamento Científico de Aleitamento Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). — Acredita-se que, para a espécie humana, o período de aleitamento seja entre 2 e 4 anos de idade, quando a criança se “autodesmamaria”. É um processo natural, porque chega uma hora em que tanto a mulher quanto a criança perdem o interesse. Mas o quanto isso puder ser estendido, melhor. Enquanto a criança recebe o leite materno, ela ganha anticorpos que a protegerão contra diarreia, alergias e infecções respiratórias. Além de evitar a obesidade.

No Brasil, de acordo com os dados mais recentes disponíveis no Ministério da Saúde, o tempo médio de amamentação é de 14 meses, abaixo do mínimo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como bom, que são 21 meses. Segundo os parâmetros da instituição internacional, o mais recomendado é que toda criança se alimente apenas com leite materno até os 6 meses de vida, e receba outros itens em conjunto com a amamentação até pelo menos 2 anos de idade.

— Se compararmos com a década de 1970, quando a média era que as crianças no Brasil mamassem só até os 3 meses, vemos que houve grande progresso. Mas é claro que precisamos melhorar — destaca a médica Elsa Giugliani.

Entre os bebês de todas as capitais brasileiras, somente 41% mamam até os 6 meses de idade, segundo o Ministério da Saúde. O índice é menor do que o de Portugal, onde 60% das crianças são amamentadas por pelo menos seis meses, como mostra o estudo de um projeto europeu sobre desenvolvimento na infância chamado HabEat. Com a intenção de melhorar este cenário em todo o mundo, de hoje a 7 de agosto é celebrada, em mais de 170 países, a Semana Mundial de Aleitamento Materno. Ela foi instituída pela ONG Waba, com apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Uma das iniciativas que começou ainda no mês passado e tem ganhado força nas redes sociais é a campanha #AmamentaçãoSemMitos, lançada pelo grupo Matrice. Nela, mulheres compartilham os principais receios que as perseguiam antes ou durante o aleitamento, e que são responsáveis pelo desmame precoce em muitos casos.

Uma dessas mulheres é Emanoelle Farias, de 32 anos. Ela fez uma cirurgia de redução de mama e acabou desenvolvendo queloides. Isso a levou a ter que refazer a cirurgia, mas desta vez passando ainda por sessões de radioterapia nas duas mamas para prevenir o reaparecimento dos queloides.

— Depois disso, minha médica disse que eu jamais poderia amamentar — conta Emanoelle, que, hoje, é formada em consultoria de amamentação. — Quando ouvi isso, eu imediatamente passei a estudar muito e ver vídeos de aleitamento para aprender como ajudar o bebê a pegar o bico do peito corretamente. Deu certo. Amamento o meu filho, Francisco, até hoje, com 15 meses. E não tenho data para parar.

 

MITOS ATORMENTAM AS MULHERES

Entre as afirmações mais frequentes no senso comum relacionado à amamentação, estão as que dizem que quem tem peito pequeno não produz leite suficiente, que é normal sentir dor no início do aleitamento, que algumas mulheres têm leite “fraco” e que aquelas que têm o chamado “bico invertido” não conseguem amamentar. A enfermeira pediátrica do Banco de Leite Humano do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Maíra Domingues Bernardes Silva, rebate todas.

Ela explica que seios pequenos têm menos tecido gorduroso, mas não menos glândulas mamárias, que são as responsáveis pela produção do leite. E, segundo ela, caso a amamentação provoque dor, existe algo errado.

— Dor não é e não pode ser vista como normal — diz ela. — A principal causa de fissura no mamilo, por exemplo, é a pega errada que o bebê faz. Ele vai parar de ferir assim que passar a pegar corretamente, então é preciso estimular que o bebê abra bem a boca, abarcando toda a aréola.

Maíra também esclarece que as mulheres com o mamilo voltado para dentro — chamado de invertido — são, sim, capazes de amamentar. Se houver dificuldade, elas devem procurar orientação em um banco de leite humano. É possível ver a localização deles no portal . Existem 18 espalhados pelo Rio, e 221 pelo Brasil.

 

Da frustração à troca de experiências

Uma das fundadoras de um grupo de apoio à amamentação que reúne mais de 6 mil mulheres, Ana demorou a descobrir como o aleitamento deve acontecer para beneficiar a criança: “Só com minha terceira filha tive uma amamentação plena. Minha caçula foi mais acolhida em suas necessidades de bebê”.

 

Dor superada

Ao lado de amigas, ela criou o blog “Não me chamo mãe”, e só conseguiu amamentar sem ferir os mamilos após a ajuda de uma voluntária especialista em aleitamento: “Só soube o que era amamentar sem dor quando minha filha tinha 2 meses”, conta Bruna, que, depois, amamentou até no carnaval.

 

Luto transformado em doação

O filho dela, Martin, morreu antes de nascer,e ,e em vez de tomar medicação para forçar o leite a secar, Clarissa decidiu doar tudo o que pudesse a bancos de leite: “Continuar produzindo lei
te foi importante para o meu processo de luto e para que eu pudesse, daquele momento terrível, tirar algo de bonito e solidário”.

 

‘Este corpo não é vulgar’

PRECONCEITO Filha do presidente do Quirguistão é criticada por ‘comportamento imoral’ ao postar nas redes sociais uma fotografia amamentando seu bebê

Uma fotografia publicada em redes sociais por Aliya Shagieva, filha mais nova do presidente do Quirguistão, Almazbek Atambayev, levantou intenso debate sobre amamentação e sexualização. Na imagem, postada em abril no Instagram, Aliya aparecia com o filho no colo, mamando em seu seio direito, com o sutiã abaixado. Críticos a acusaram de “comportamento imoral”, e Aliya acabou retirando a foto do ar, mas defende o ato de amamentar e diz que a polêmica se deve à cultura do sexo em relação ao corpo feminino.

— Este corpo que me foi dado não é vulgar — disse Aliya, de 20 anos, em entrevista à BBC. — Ele é funcional, e seu propósito é preencher as necessidades do meu bebê, não para ser sexualizado.

Na publicação da fotografia, a filha do presidente escreveu: “Eu vou amamentar o meu filho em qualquer hora e lugar que ele precisar”. Mas não foram apenas os haters das redes sociais que a atacaram. Os pais dela, Almazbek e Raisa, também não ficaram contentes.

— Eles realmente não gostaram. E isso é compreensível, porque a geração mais jovem é menos conservadora que seus pais — disse Alyia.

Normalmente, Alyia usa as redes sociais para compartilhar suas pinturas e paisagens do Quirguistão, mas desde o nascimento de seu filho, o bebê é tema recorrente, frequentemente sendo amamentado.

— Quando eu estou amamentando o meu filho eu sinto que estou dando a ele o melhor que posso dar — disse ela. — Cuidar do meu bebê e atender às suas necessidades é mais importante para mim do que o que as pessoas dizem.

O Quirguistão é uma ex-república soviética de maioria muçulmana. O país é conservador, mas a amamentação em público é aceita, só que, normalmente, as mulheres tentam cobrir os seios. Quando a fotografia foi publicada, alguns internautas a criticaram por considerar desnecessário expor um momento tão íntimo.

A fotografia repercutiu em veículos de imprensa da Europa, levantando o debate sobre os resquícios conservadores que ainda enxergam esse ato como vulgar. Mas ela também recebeu apoio, sobretudo, de outras mulheres.