A atual pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) se apresenta ainda desafiadora e pesquisadores em todo o planeta se debruçam sobre trabalhos de pesquisa na tentativa de esclarecer com segurança seus fatores epidemiológicos, fisiopatologia, melhor forma de condução do tratamento, entre outros aspectos.
O mesmo ocorre na área da oftalmologia. Qual a importância do comprometimento ocular na clínica do paciente? Qual a positividade do vírus na lágrima e material conjuntival? Qual a importância desse locus como meio de transmissão entre a população? Qual a possibilidade de contaminação de profissionais de saúde através da presença do vírus na região dos olhos? A não uniformidade da metodologia dos trabalhos publicados e com frequência o N amostral pequeno, entre outros, dificulta a resposta a essas perguntas.
O que os trabalhos sobre a Covid-19 têm nos mostrado até agora?
Um dos primeiros trabalhos divulgados e publicado em abril pela Academia Americana de Oftalmologia (AAO), Ocular Findings and Proportion with Conjunctival SARS-COV-2 in COVID-19 Patients, avaliou 121 pacientes em Wuhan, China, todos Covid positivo confirmados por RT-PCR em swab nasofaríngeo. A população do estudo apresentou sintomas oculares em 6,6% dos casos (08 pacientes), desses apenas 01 apresentou SARS-CoV-2 positivo na amostra de conjuntiva. Os sintomas oculares mais frequentes foram prurido, hiperemia e/ou secreção conjuntival, lacrimejamento e sensação de corpo estranho. Dois pacientes sem sintomas oculares foram positivos para SARS-CoV-2 na amostra conjuntival. A proporção de resultados positivos em conjuntiva foi significativamente diferente daqueles do swab nasofaríngeo (2,5% X 70,2%).
Outro trabalho realizado em Singapura e publicado em março no site da AAO: Assessing Viral Shedding and Infectivity of Tears in Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Patients, revelou que dos 17 pacientes avaliados nenhum apresentou sintoma ocular, embora um tenha desenvolvido hiperemia e edema conjuntival durante a internação. Todos as amostras de material lacrimal, colhidas em vários momentos da hospitalização desse grupo, tiveram resultado negativo para a presença de SARS-CoV-2 (isolamento viral) e RT-PCR. Sugerindo, assim, baixo risco de transmissão através da lágrima, nesse grupo.
Um trabalho publicado no JAMA Ophthalmology como brief report em 31/03/2020: Characteristics of Ocular Findings of Patients With Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) in Hubei Province, China, avaliou manifestações oculares e prevalência viral em conjuntiva de 38 pacientes com Covid-19 confirmada. Dos 38 pacientes do estudo, 28 apresentaram RT-PCR positivo no swab nasofaríngeo e, desses, 02 apresentaram SARS-CoV-2 positivo em material de conjuntiva. Doze pacientes (31,6%) cursaram com manifestações oculares sugestivas de conjuntivite (hiperemia conjuntival, quemose, lacrimejamento e secreção) e desses, 11 pacientes apresentaram RT-PCR positivo no swab nasofaríngeo. As manifestações oculares foram mais frequentes no grupo com quadro mais grave de Covid. Esse trabalho sugere que apesar da baixa prevalência do SARS-CoV-2 na lágrima a transmissão através dos olhos é possível.
Outros trabalhos recentemente publicados revelam novas nuances do quadro oftalmológico da Covid-19. Entre eles destacam-se:
- um relato de caso da França que descreve a presença de conjuntivite hemorrágica com pseudomembrana conjuntival em paciente internado em UTI, com abertura do quadro no 17º dia de doença, alertando para possíveis reações oculares tardias (após 2 semanas) na Covid-19.
- um relato de caso da China descrevendo a presença do SARS-CoV-2 em material conjuntival (RT-PCR) de paciente Covid positivo que cursou com quadro de conjuntivite aguda bilateral de aparecimento 13 dias após o início da doença.
- Um trabalho de pesquisadores de SP relatando, possivelmente pela primeira vez, alterações retinianas em imagens de OCT (Tomografia de Coerência Óptica) de 12 pacientes positivos para Covid-19, que apresentavam acuidade visual e reflexos pupilares normais.
Há evidência de que outros coronavírus possam ocasionalmente causar conjuntivite em seres humanos, o que foi descrito em 2004, quando o coronavírus humano NL 63 (HCoV-NL 63) foi primeiramente identificado em um bebê com bronquiolite e conjuntivite. Subsequentemente, em 28 casos de crianças com infecção confirmada pelo HCoV-NL63, 17% apresentaram conjuntivite. Embora nessa data a confirmação tenha sido feita em crianças, os relatos sobre a Covid-19 em pediatria, até o momento, não destacaram o comprometimento oftalmológico.
É importante ressaltar que todos os casos de comprometimento oftalmológico pelo Covid-19, até o momento, são de bom prognóstico e conduzidos conforme os protocolos de tratamento de qualquer outra virose.
Novas pesquisas trarão luz a essas questões. Até o momento fica a hipótese de que a transmissão através dos olhos pode ocorrer e que profissionais na linha de frente da pandemia devem usar EPIs adequados. Em todo o mundo, especialistas da área de oftalmologia e suas sociedades desenham os melhores modelos de proteção aos profissionais e pacientes no atendimento ambulatorial, organizando protocolos de boas práticas em consultório e clínicas oftalmológicas.
Referências:
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Viviane Lanzelotte
Grupo de Trabalho de Oftalmologia
Maio / 2020