Doença Celíaca

Introdução:

A doença celíaca (DC) é uma enteropatia imunomediada causada pela ingestão do glúten em pacientes com predisposição genética. Acomete ampla faixa etária, desde lactentes a partir de 6 meses até idosos, com um conjunto de sintomas bastante diverso, desde manifestações gastrointestinais e/ou extraintestinais até a ausência de sintomas. A prevalência é estimada em 1% da população mundial, com variação de acordo com a região e etnia, informação esta que possibilita o rastreio em populações de risco. Esse rastreio, associado ao surgimento de exames com alta sensibilidade e especificidade e à difusão do conhecimento sobre sintomas atípicos, permitiu um aumento significativo do diagnóstico nos últimos anos. A clínica depende de alguns fatores como idade do paciente, quantidade de glúten na dieta e extensão da resposta inflamatória na mucosa intestinal. O intestino delgado é acometido preferencialmente no duodeno e jejuno, levando a má  absorção de ferro, zinco, cálcio, ácido fólico e vitaminas lipossolúveis e raramente o íleo terminal, levando nesses casos a deficiência de vitamina B 12.

Quadro Clínico: se divide em manifestações gastrointestinais, mais comuns em crianças mais novas,  e extraintestinais, em crianças mais velhas e adolescentes.

Sintomas gastrointestinais: diarreia com ou sem esteatorreia, dor abdominal, distensão abdominal, náuseas e ou vômitos, flatulência, constipação. Pode ocorrer desnutrição, falha no crescimento e irritabilidade.

Sintomas extraintestinais: perda ponderal, atraso no crescimento, atraso puberal, anemia ferropriva refratária, fadiga, osteopenia, osteoporose, dermatite herpetiforme, sintomas neuropsiquiátricos, alterações em enzimas hepáticas, infertilidade, alterações no esmalte dentário, estomatite aftosa recorrente, artrite, artralgia, sinovite.

Crise celíaca: rara, pode acometer crianças principalmente menores de 2 anos; caracteriza-se por diarreia intensa e desidratação grave, necessidade de internação, reposição hidroeletrolítica e corticoterapia.

DC refratária: pacientes com manifestações clínicas de má absorção apesar da dieta sem glúten há mais de 12 meses ou se sintomas graves que necessitem de intervenção farmacológica independente do tempo de dieta.

DC silenciosa: definida pela presença de anticorpos, HLA DQ2 ou DQ8 e alterações na biópsia compatível com DC, especialmente no grupo de risco (parentes de pacientes, alterações genéticas e doenças autoimunes), porém sem sintomas sugestivos de DC.

Diagnóstico:  segundo o guideline da Sociedade Europeia de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica (ESPGHAN-2020), para o diagnóstico de DC deve-se realizar a dosagem de IgA total e anticorpo IgA anti-transglutaminase (TGA-IgA), não sendo necessário outro anticorpo. Se TGA-IgA maior ou igual 10 vezes o valor do limite superior do normal, solicita-se nova amostra sanguínea para dosar anticorpo IgA anti-endomísio (EMA-IgA). Se positivo, o diagnóstico de DC poderá ser feito com segurança, sem biópsia; deve ser ressaltado que nem todos  os testes poderão ser usados para este fim. Os pacientes com deficiência de IgA, com testes sorológicos IgG positivos, devem realizar biópsia. A biópsia deve ser solicitada quando TGA-IgA positivo, menor que 10 vezes o limite superior do normal. Utiliza-se a classificação de Marsh modificada por Oberhuber, avaliando proporção de vilosidades e criptas, graus de atrofia e infiltrado inflamatório. A tipagem do HLA DQ2 e DQ8 é usada em casos especiais e, se negativa, o risco de DC é muito baixo; resultado positivo não confirma o diagnóstico.

Os pacientes com TGA-IgA e EMA positivos, com alterações histológicas mínimas (Marsh 1) ou sem alterações (Marsh 0), são chamados DC potencial; a dieta isenta de glúten no momento da biópsia ou erro de técnica de obtenção da amostra levam a falso negativo.

A Sociedade Norte Americana de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrologia Pediátrica (NASPGHAN) recomenda que crianças de alto risco (familiares de primeiro grau de DC, diabetes tipo 1, tireoidite autoimune, síndrome de Down, síndrome de Williams, síndrome de Turner e deficiência de IgA) sejam rastreadas sempre.

Tratamento: a dieta isenta de glúten (trigo, centeio e cevada) é o único tratamento disponível no momento; os produtos à base de aveia podem ser contaminados desde o plantio à colheita, por isso são retirados da dieta. A exclusão total e permanente do glúten na maioria das vezes é suficiente para reverter os sintomas. É necessário avaliar a deficiência de micronutrientes e, pela lesão intestinal, a intolerância à lactose; no caso de falha ou persistência dos sintomas avaliar adesão a dieta, possíveis contaminações ou DC refratária.

Família, amigos e a escola devem estar cientes sobre a doença e a importância da adesão à dieta. A ajuda de um nutricionista com experiência em DC é essencial e quando necessário procurar auxílio psicológico. A Acelbra (Associação dos Celíacos do Brasil) é uma entidade sem fins lucrativos que tem um papel muito importante na divulgação e conscientização, com reuniões, atividades e disponibilizam na internet livros de receitas de sem glúten.

Conclusão: O novo guideline da ESPGHAN permite o diagnóstico da DC sem necessidade de biópsia em alguns casos. As crianças com suspeita ou diagnosticadas precisam ser encaminhadas ao gastroeterologista pediátrico para acompanhamento. A dieta permanente isenta de glúten reverte os sintomas, melhora a qualidade de vida e previne complicações tardias.

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