Doença Inflamatória Intestinal de Início Muito Precoce – Devemos Lembrar

Silvio da Rocha Carvalho, Cassia Freire Vaz, Mariana Tschoepke Aires, Vera Queiroz Amante Machado, Claudio José de Almeida Tortori, Verônica Santos de Oliveira, Silvia Anderson Cruz, Marcia Angelica Bonilha Valladares, José Cesar da Fonseca Junqueira, Marise Elia de Marsillac, Sheila Pércope.

A doença inflamatória intestinal (DII) acomete crianças e adolescente, podendo iniciar os sintomas em qualquer idade. Tendo pico de incidência em adultos jovens, é classificada como de início pediátrico abaixo dos 17 anos; iniciando abaixo de 10 anos, chamamos de início precoce; abaixo de 6 anos, início muito precoce (DII-IMP). Algumas vezes pode ser feita referência à doença iniciada entre o nascimento e dois anos como DII de início na infância. Cerca de 25% dos casos de DII iniciam na pediatria e dentre estes, 15 % têm DII-IMP.

As DII são classificadas em doença de Crohn (DC), retocolite ulcerativa (RCU) e doença inflamatória intestinal não classificada (DII-NC). De forma geral, a DC pode atingir todo o tubo digestório, com aspecto saltatório à colonoscopia e histologicamente como acometimento transmural com granulomas. Já as lesões da RCU iniciam-se na porção mais distal do colo estendendo-se continuamente à uma porção proximal e se mantendo em seus limites; histologicamente a lesão é superficial. Na DII-NC não se consegue estabelecer a distinção entre as duas.

O número de casos  de DII-IMP parece estar aumentando nos últimos anos, assim como a DII de modo geral. Na DII-IMP pode ser muito difícil de diferenciar entre os tipos de DII. Em geral são doenças graves e de manejo difícil e com história familiar positiva. Pode iniciar a partir do nascimento, com sintomas leves e rapidamente progredir.  Muitas vezes o início pode se assemelhar à alergia ao leite de vaca não IgE mediada, com presença apenas de sangue nas fezes, porém com evolução distinta, com queda do estado geral, dificuldade de ganho de peso, surgimento de lesões perianais como abscesso (mesmo que pequenos), dentre outras manifestações.

A DII-IMP deve ser sempre lembrada para não retardar o diagnóstico. Algumas destas crianças iniciam os sintomas nos primeiros meses, mas só têm o diagnóstico fechado próximo ao primeiro ano. Após a suspeita clínica, é necessário que sejam realizados exames laboratoriais e de imagem, além de endoscopia para que se chegue ao diagnóstico. Dentre os exames laboratoriais utilizados para avaliar a hipótese diagnóstica de DII devem ser realizados: hemograma, contagem de plaquetas, VHS, proteína C reativa calprotectina fecal.

No caso dos lactentes é sempre importante que se considere as peculiaridades desta faixa etária para avaliação adequada dos resultados dos exames. Um exemplo típico é o da calprotectina fecal. Não existem valores consolidados para crianças abaixo de quatro anos, o que pode dificultar o uso desta ferramenta, porém sabemos que quanto mais baixa a idade, mais alto o valor de corte.

Os exames endoscópicos deverão ser realizados para que se possa saber a extensão do acometimento. A colonoscopia avalia o colo, a válvula ileocecal e o íleo terminal. A endoscopia alta é sempre mandatória pois a doença pode acometer partes mais proximais do tubo digestório, com lesões em quaisquer dos órgãos. Deve ser realizado estudo do intestino delgado também que, em geral é feito por ressonância magnética. A tomografia computadorizada pode ser uma opção, tendo a desvantagem da radiação. Uma opção é a cápsula endoscópica que, para ser empregada em crianças, acaba por exigir sua colocação por endoscopia digestiva alta no estômago pela impossibilidade da deglutição.

A etiologia da DII envolve interação entre meio ambiente (exposoma), microbioma intestinal, fatores imunológicos e genéticos. Assim, a interação entre estes diversos fatores parece ser a responsável pela doença. A influência do meio ambiente pode ser percebida pela ocidentalização da dieta e pela menor incidência em países em desenvolvimento. Fatores imunológicos, como a ação de citocinas e aumento da permeabilidade da mucosa, alteração da microbiota intestinal e sua interação com esta mesma mucosa, propiciam o substrato necessário o início e manutenção da inflamação. Na DII do tipo adulto, como a que ocorre nos adolescentes, já foram definidos mais de uma centena de genes que atuam conjuntamente por meios diversos, favorecendo ou inibindo mecanismos pró e anti-inflamatórios. São as chamadas DII poligênicas. Na DII-IMP é fácil imaginar que a influência genética pode ser mais importante.

Isto pode ser observado nas DII-IMP em que se consegue isolar um gen causador, as chamadas monogênicas. Como exemplo, alguns erros inatos da imunidade com a imunodeficiência comum variável, doença granulomatosa crônica e síndrome de Wiskott-Aldrich, mutações na IL-10 ou seus receptores. Portanto, a idade muito precoce do início da doença exige que sejam consideradas as doenças monogênicas.

Sendo uma doença de conhecimento recente, as opções de tratamento são as usadas na DII. A alimentação enteral exclusiva, que é uma opção na DII pediátrica dentro das suas indicações, pode ser usada na DII-IMP. Nesta idade pode ser feita com fórmula de aminoácidos. O uso de imunomoduladores (azatioprina, 6-mercaptopurina) pode ser controverso pelo risco de malignidade. Uma opção é o uso de metotrexato. Os chamados medicamentos biológicos (infliximabe e adalimumabe) estão liberados para uso em crianças maiores (acima de seis anos); portanto seu uso na DII-IMP é feito off-label; como em geral estas crianças têm doença mais extensa e grave, pode-se laçar mão nestes casos. O tratamento cirúrgico é uma opção para as crianças refratárias ao tratamento clínico.

A incidência da DII-IMP está aumentando assim como das demais DII, e deve ser pensada na criança abaixo de seis anos com dor abdominal, diarreia, hematoquezia, na investigação da perda de peso, baixa estatura, febre a esclarecer, entre outros. Deve ser lembrada também em lactentes cujas manifestações clínicas podem ser pouco diferenciadas de outros acometimentos  desta faixa etária.

Referências

1- Kelsen JR, Sullivan KE, Rabizadeh S, Singh N, Snapper S, Elkadri A, Grossman AB. North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition Position Paper on the Evaluation and Management for Patients With Very Early-onset Inflammatory Bowel Disease. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2020 Mar;70(3):389-403. doi: 10.1097/MPG.0000000000002567. PMID: 32079889.

2- Arai K. Very Early-Onset Inflammatory Bowel Disease: A Challenging Field for Pediatric Gastroenterologists. Pediatr Gastroenterol Hepatol Nutr. 2020 Sep;23(5):411-422.

3- Shim JO. Recent Advance in Very Early Onset Inflammatory Bowel Disease. Pediatr Gastroenterol Hepatol Nutr. 2019 Jan;22(1):41-49.

4- Sdepanian VL, Catapani A, Oba J, Silva LR, Maraci, Carvalho SR, editores. Doença Inflamatória Intestinal em Pediatria, São Paulo: Ed Mazzoni; 2019.