Nota sobre Transtorno do Espectro Autista e Tratamentos Nutricionais

Julho de 2015

SOPERJ
Comitê de Neurologia
Comitê de Atenção Integral ao Desenvolvimento e Reabilitação
Comitê de Saúde Mental
Comitê de Alergia e Imunologia
Comitê de Gastroenterologia

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é o nome atualmente aceito pela comunidade científica para definir um grupo complexo e variado de transtornos de neurodesenvolvimento que podem causar problemas com o pensamento, sentimento, linguagem e capacidade de se relacionar com os outros (1). Esta é a definição proposta pela Associação Americana de Psiquiatria, na versão mais atualizada de seu manual diagnóstico, o DSM V, um dos instrumentos mais utilizados no mundo para conduzir o diagnóstico clínico de transtornos do comportamento e desenvolvimento infantil por neuropediatras, psiquiatras da infância e adolescência e pediatras do desenvolvimento, bem como embasar e conduzir pesquisas na área.
A base do TEA é neurobiológica, ou seja, seus sintomas decorrem de alterações funcionais no sistema nervoso central, afetando cognição, comportamento e emoção. O desenvolvimento saudável do sistema nervoso e suas disfunções dependem de fatores genéticos, epigenéticos (influência do ambiente na expressão genética) e ambientais. Tais fatores, apesar das extensas pesquisas desenvolvidas desde a primeira descrição mais bem estruturada, em 1943, particularmente com os avanços das neurociências (genética, imagem, bioquímica e neuropsicologia) a partir da década de 1990, ainda não são plenamente compreendidos, não restando dúvidas, contudo, quanto a um funcionamento cerebral diferenciado nestes indivíduos.
A forma como o TEA afeta uma pessoa e a gravidade dos sintomas sofrem imensa variabilidade entre os indivíduos. Isso representa a influência de fatores protetivos como o nível intelectual, diagnóstico precoce, práticas terapêuticas de reabilitação adequadas, intensivas e precoces, fatores agravantes como comorbidades psiquiátricas, neurológicas e genéticas. O TEA, portanto, não é um transtorno único, certamente não em apresentação clínica, provavelmente também não em sua causalidade. O TEA pode ser confundido com outros transtornos do desenvolvimento (distúrbio específico de linguagem, déficit cognitivo, por exemplo), particularmente casos mais brandos. Não há sintomas exclusivos do diagnóstico e a existência de alguns que desapareçam ao longo do tempo não significa que o individuo tinha autismo e se curou. Mais provavelmente o diagnóstico evolutivo apontou para outro diagnóstico mais provável ou um abrandamento, mas persistência do TEA.
O CDC (Centro para o Controle de Doenças, órgão americano) relatou, em 2014, que uma em cada 68 crianças americanas atende critérios para o diagnóstico de TEA, aumento expressivo de 30% em relação ao relatório anterior (2). As causas deste aumento não são ainda conhecidas, mas envolvem melhores definições, que incluem os quadros mais leves do espectro e melhor treinamento de profissionais de saúde. Não temos estatísticas atuais precisas em nosso país, mas qualquer profissional que lide com desenvolvimento infantil irá endossar que o TEA é cada vez mais prevalente.
O TEA causa profundo impacto não só em seu portador, mas também em seus familiares, que recebem, com toda a razão, diante das poucas respostas que os clínicos ainda podem oferecer em termos de tratamentos específicos e eficazes, quaisquer novas propostas de tratamento com grande expectativa e esperanças. Este sentimento é lícito e compreensível. Diante de tudo que foi exposto acima, não podemos esperar que a tão aguardada cura venha de uma única terapia para qualquer caso de TEA, nem que ela não seja fruto de um esforço conjunto da comunidade científica, com estudos sérios, criteriosos, que envolvam grandes amostras e que acompanhem por longo tempo estes indivíduos. Oferecer qualquer solução sem este cuidado, é leviano para com a saúde de nossas crianças e adolescentes com TEA, bem como para com os sentimentos de seus pais e a confiança que eles nos depositam.
Feita esta introdução, a SOPERJ, por intermédio de diversos comitês com interesse direto ou indireto no assunto, sente-se no dever de externar sua opinião em relação a propostas de terapêutica nutricional com restrição de certos nutrientes que comumente é objeto de questionamento entre pais de portadores de TEA e mesmo de profissionais da área de saúde. Tais propostas de restrição de alérgenos alimentares são advogadas como tendo potencial de gerar a cura do referido transtorno, sendo baseada em uma teoria imunoalérgica alimentar não comprovada como causa de TEA. O levantamento científico abaixo exposto foi feito pela equipe de Neuropediatria do IPPMG-UFRJ, a qual agradecemos.
Um levantamento de citações usando os descritores ("Autistic Disorder"[Mesh]) AND "etiology" [Subheading] realizado em 7 de julho de 2015, retorna um total de 6562 citações, reflexo das diversas especulações, particularmente as associadas aos fatores ambientais. Restringindo-se este levantamento aos estudos epidemiológicos este número se reduz para 835 citações.
Desde 1997 se especula sobre a eventual associação da hiperplasia linfonodular íleo-colônica (3). Numa tentativa de responder as questões epidemiológicas encontra-se a proposta de um registro prospectivo multicêntrico nos Estados Unidos. No entanto, seus resultados ainda não têm resposta para a associação entre aspectos gastrointestinais como fatores associados de forma causal com o autismo (4).
Por outro lado, embora outro estudo prospectivo comparativo tenha demonstrado que o grupo de crianças com autismo de sua amostra (total de 148 crianças) tenha apresentado uma maior frequência de hiperplasia linfonodular ileo-colônica que as crianças do seu grupo controle (total de 30 crianças), estes grupos não eram balanceados em relação a sintomas gastrointestinais nem às dietas em uso. Os próprios autores em sua discussão destacam que, para melhor entendimento do significado da hiperplasia linfonodular íleo-colônica, estudos adicionais precisam ser realizados, pois estas associações permanecem sem esclarecimento. (5)
No que diz respeito às intervenções, existe uma quantidade grande de suplementos e  terapias alternativas, assim como dietas de exclusão propostas para crianças com autismo. Evidência atual de eficácia destas dietas é pobre. Faltam estudos de qualidade controlados e randomizados. (6)
Diante das informações acima expostas, os comitês da SOPERJ não endossam como prática terapêutica generalizada a restrição de alimentos potencialmente alergênicos
da dieta de portadores de TEA, uma vez que as evidências de sua eficácia não são fortes o suficiente diante dos potenciais riscos nutricionais para indivíduos que já podem apresentar limitações de interesse alimentar por conta do próprio transtorno. A criança e o adolescente com TEA devem ser sempre avaliados de forma global. Sinais e sintomas tradicionalmente associados à alergia alimentar que possam indiretamente agravar o comportamento e o funcionamento social e cognitivo do portador de TEA (como de quaisquer outras pessoas) devem ser investigados e tratados (7).
A comunidade científica não deve poupar esforços no estudo do TEA para que possamos, um dia, oferecer esperança de um tratamento eficaz. Até lá, toda nova informação e tentativa de acrescentar luz e entendimento a este quadro deve ser recebida com alegria, mas com critério e análise. Este é o nosso dever médico.  

Referências:

1. http://www.psychiatry.org/mental-health/autism-spectrum-disorders (acessado em 8.7.2015 as 11:00)
2. http://www.cdc.gov/media/releases/2014/p0327-autism-spectrum-disorder.html (acessado em 8.7.2015 as 11:00)
3.    Wakefield AJ, Murch SH, Anthony A, Linnell J, Casson DM, Malik M, et al. Ileal LNH, non-specific colitis and pervasive developmental disorder in children. Lancet 1997; 351:637–641.
4.  The Study to Explore Early Development (SEED): a multisite epidemiologic study of autism by the Centers for Autism and Developmental Disabilities Research and Epidemiology (CADDRE) network. J Autism Dev Disord. 2012 Oct;42(10):2121-40.
5.   Wakefield AJ1, Ashwood PLimb KAnthony AThe significance of ileo-colonic lymphoid nodular hyperplasia in children with autistic spectrum disorder. Eur J Gastroenterol Hepatol. 2005 Aug;17(8):827-36.
6.  Claire Millward2, Michael Ferriter1,*, Sarah J Calver3, Graham G Connell-Jones4Editorial Group: Cochrane Developmental, Psychosocial and Learning Problems Group. Gluten- and casein-free diets for autistic spectrum disorder. DOI: 10.1002/14651858.CD003498.pub3
7. Buie T, Campbell DB, Fuchs GJ, Furuta GT, Levy J, Van de Water J, Whitaker H et al. Evaluation, Diagnosis, and Treatment of Gastrointestinal Disorders in Individuals With ASDs: A Consensus Report. Pediatrics 2010;125:S1–S18.