Os impactos da violência na saúde de crianças e adolescentes: algumas reflexões.

Autores:
Grupo de Trabalho de Segurança e Prevenção da Violência
Cecy Dunshee de Abranches
Adriana Rocha Brito
Gabriella Lucas Dolavale
Adriana Burla Klajman
Michel Wassersten

 

A violência na sociedade contemporânea é visível, invade a vida de todos e é um desafio social a ser enfrentado.

Para isso, são necessárias algumas considerações, reflexões e compreensões sobre este que é um fenômeno complexo, multicausal, de vários tipos e naturezas, com inúmeras manifestações e repercussões na saúde, em todos os seus aspectos, mas especialmente na saúde mental de todos os indivíduos envolvidos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) utiliza a definição de violência como sendo: “O uso intencional de força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.”1

A OMS emprega o modelo ecológico, baseado nos estudos de Bronfenbrenner,2 para o entendimento da violência, ou seja, retrata a violência como o resultado da complexa interação de fatores individuais com relacionamentos estabelecidos no âmbito comunitário, familiar e social. Por isso, é necessário ter sempre em mente as interseções e conexões existentes entre os diferentes níveis.

Compreendendo a infância e a adolescência como fases de desenvolvimento contínuo e de intenso processo de maturação, estudos comprovam que experiências vividas nessas faixas etárias deixam marcas registradas que, apesar de poderem ser reparadas ou reconstruídas, costumam deixar sequelas importantes a curto e longo prazo.3,4

Nos casos de experiências vividas em situações de violência, os danos e agravos se traduzem em consequências que podem ser diferentes de acordo com a etapa do desenvolvimento em que se encontra a criança ou o adolescente. Os efeitos lesivos destas situações ocorrem estando o sujeito no papel de agressor, de vítima ou de testemunha.4,5

Assim, alguns critérios como a idade, o grau de desenvolvimento psicológico, o tipo de violência, a frequência, a duração, a natureza, a gravidade da agressão, o vínculo afetivo entre o autor da violência e a vítima, a representação do ato violento pela criança e/ou adolescente, as medidas em curso para a prevenção de futuras agressões, entre outros, podem determinar o impacto da violência na saúde física, mental e social para esse grupo infanto juvenil.

Deste modo, as várias formas de violência podem acarretar danos físicos, emocionais, psicológicos e cognitivos, alterando a sensibilidade da criança e do adolescente ou a forma de eles lidarem com os problemas e com possíveis sequelas tanto no presente como no futuro. Como essas experiências são sentidas de formas diferentes, dependendo do estágio de vida e das diferentes respostas vindas do meio em que vivem, é possível perceber variações no grau e na natureza da violência. Um exemplo disso é que geralmente as crianças pequenas são mais vulneráveis a agressões que ocorram no âmbito familiar, enquanto crianças maiores e/ou adolescentes, além do ambiente familiar, estão também expostos à violência em locais externos como a escola e a comunidade.5

No caso da violência urbana, que ocorre no espaço socio geográfico das cidades e que é associada a sua formação histórica e social, é reforçada a vulnerabilidade e a desproteção das crianças e adolescentes que coabitam com doenças, drogas e violência armada.4

No contexto familiar, imerso na cultura social que estabelece as bases entre o que é não violento e o que é considerado como violento, encontramos a violência intrafamiliar, que ocorre nas relações hierárquicas e intergeracionais. Esta violência interpessoal consiste em formas de comunicação e de resolução de conflitos muitas vezes confundidas como estratégias de educação.6

De qualquer forma, independentemente do local ou da tipologia, a maioria dos casos de violência contra a criança e o adolescente tem forte impacto em suas vidas e em seu desenvolvimento. Eles aprendem e incorporam mecanismos violentos de resolução de conflitos que serão postos em prática na vida cotidiana até a vida adulta, inclusive na educação de seus futuros filhos, construindo uma “cascata da violência” que é uma transmissão intergeracional fomentada pela cultura da violência.3,5,6

Como vimos até agora, para o enfrentamento das situações de violência busca-se o entendimento sobre todos os fatores envolvidos (multicausal) e o ambiente que levaram tal violação de direitos a acontecer, mas acreditamos também ser necessário o conhecimento da magnitude desse fenômeno através dos dados encontrados nas diferentes faixas etárias e nos diferentes tipos de violência sofrida.

Desse modo, através do Sistema de Informação de Agravos de Notificações, do Ministério da Saúde (SINAN/MS), realizado em 2011, foram registrados 39.281 atendimentos na faixa de < 1 a 19 anos, o que representam 40% do total de 98.115 atendimentos computados pelo sistema nesse ano de 2011 (quadro 1). Nesse quadro verifica-se que, em todas as faixas etárias de < 1 a 19 anos, há uma incidência maior no atendimento por violência do sexo feminino e que nos anos iniciais há diferenças leves entre o sexo feminino e masculino, mas quando chega na fase da adolescência, o número de violência contra as meninas dispara. 7

 

Quadro 1 – Números e % de atendimentos de crianças e adolescentes (<1 a 19 anos) por violências segundo sexo e faixa etária das vítimas. Brasil, 2011.

SEXO Número e % de atendimentos de crianças e adolescentes (< 1 a 19 anos)
  <1 1-4 5-9 10-14 15-19 Total
Masculino 1.543

48,2%

2.569

45,2%

2.609

45,9%

3.260

32,1%

5.577

38,5%

15.558

39,7%

Feminino 1.658

51,8%

3.113

54,8%

3.076

54,1%

6.895

67,9%

8.922

61,5%

23.664

60,3%

Total 3.201

100%

5.682

100%

5.685

100%

10.155

100%

14.499

100%

39.222

100%

Fonte: SINAN/SVS/MS – Mapa da Violência 2012: Crianças e Adolescentes.

 

Em relação aos tipos de violência sofrida pelas vítimas que foram atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS), em 2011, observa-se que a violência física concentra 40,5% do total de crianças e adolescentes entre 15-19 anos. Nos casos de violência sexual o percentual é de 83,2% no sexo feminino sendo que a maior concentração dessas notificações se concentra na faixa etária de 5-14 anos.7  Já a violência psicológica ou moral registrou 17% e a negligência ou abandono foi motivo de 16% dos atendimentos, mais concentrados na faixa de menos de 1-4 anos.7

No que se refere a violência letal, os adolescentes são considerados as maiores vítimas, como demonstrado através do Índice de Homicídios na Adolescência – IHA de 2012. Este documento apresentou uma estimativa de que mais de 42 mil adolescentes de 12-18 anos poderão ser vítimas de homicídio nos municípios brasileiros. Isso significa que para cada grupo de 1.000 adolescentes que tinham 12 anos em 2012, 3,32 poderão ser mortos por homicídio antes de completarem o seu 19º aniversário.7 Além disso, os dados apontam que o sexo masculino tem o risco 11,92 vezes superior ao de adolescentes do sexo feminino.7

O Atlas da Violência 2019 apontou que os dados oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS), demostraram que, em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil, o que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para cada mil habitantes. Este foi o maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país.8 Tais dados se tornaram mais dramáticos quando levamos em conta que a violência letal acomete principalmente a população jovem, ou seja, 59,1% do total de óbitos de homens entre 15-19 anos de idade são ocasionados por homicídio.

Diante dessas reflexões sobre os impactos da violência na saúde de crianças e adolescentes, gostaríamos de chamar a atenção dos profissionais de saúde que lidam com essa faixa etária para a importância da identificação e da detecção das diversas situações de violência. Assim, será possível destacar aos familiares dessa população infanto juvenil os fatores de proteção e alertar sobre as vulnerabilidades, os riscos e os danos da violência contra crianças e adolescentes.

Devemos aproveitar ao máximo as oportunidades oferecidas pelos contatos com as famílias a fim de romper com o ciclo de violência, que geralmente é naturalizado na dinâmica familiar, e colaborar na tecelagem de novas formas de comunicação intrafamiliar como a construção de confiança, respeito, carinho, amor, gentileza, cooperação e solidariedade.

Essa tecelagem de novas formas de comunicação pode começar no próprio atendimento e na relação do profissional com a criança ou adolescente e sua família.  Uma das principais ferramentas neste sentido são as orientações sobre de como lidar com os conflitos existentes nas relações interpessoais. A resolução de conflitos depende, em grande parte, da clareza e da eficácia da comunicação. A base fundamental é saber escutar com sensibilidade e atenção e transmitir à outra parte que suas mensagens são compreendidas. Com isso, se constrói a confiança e o respeito, apesar das discordâncias, fortalecendo as construções da cultura da paz.4,5

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  1. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R (eds.). Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Geneva: OMS, 2002.
  2. Bronfenbrenner U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
  3. Gonçalves HS. Infância e violência no Brasil. Paulo de Frontin, RJ: NAU Editora, 2003.
  4. Brasil, Ministério da Saúde. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde/Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
  5. Assis SG, Constantino P, Avanci JQ (Org.). Impactos da violência na escola: um diálogo com professores. RJ: Ministério da Educação/Ed. Fiocruz, 2010.
  6. Assis SG, Avanci JQ. É possível prevenir a violência? Refletindo sobre risco, proteção, prevenção e promoção de saúde. In: Njaine k, Assis SG, Constantino, P (Org.). Impactos da violência na saúde. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.
  7. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e Adolescente. Violência contra Crianças e Adolescentes: Análise de Cenários e Propostas de Políticas Públicas/elaboração de Marcia Teresinha Moreschi – Documento eletrônico – Brasília: Ministério dos Direitos Humanos, 2018.
  8. Cerqueira D (Coordenador). Atlas da Violência 2019. IPEA, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.

Novembro / 2019