Doença Renal Crônica: Prevenção

Os primeiros mil dias (e muito mais) e o rim. Onde e como começa a prevenção da doença renal crônica?

Muito tem sido falado sobre a importância dos 1000 primeiros dias na saúde da criança e mesmo do adulto. O período que compreende a gestação e os 2 primeiros anos tem sido demonstrado como crucial para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis como diabetes e doenças cardiovasculares. O rim é um dos órgãos lesados em situações de risco no feto, recém-nascido, lactente e criança. Pode ser alvo de lesões por patologias que podem começar já na infância, como a hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes mellitus (DM), obesidade e dislipidemias. No entanto vários trabalhos demonstram a importância do cuidado com a saúde da mulher mesmo antes da concepção, o que envolve profissionais de saúde, mas também toda a família, comunidade e escolas, contribuindo para a disseminação de informações sobre medidas preventivas para manutenção da saúde global.

A doença renal crônica (DRC) acomete 8 a 18% da população mundial, sendo 2% destes em estágio terminal, necessitando de terapia renal substitutiva ou transplante. Estes pacientes tem 5 a 10 vezes maior risco de morte devido às causas cardiovasculares mesmo antes de apresentarem doença renal crônica terminal (DRCT). É muito importante identificar os pacientes de risco desde o início.

Em 2016 a campanha do dia mundial do rim teve como tema “A prevenção da doença renal começa na infância”, ressaltando que HAS, proteinúria e DRC na idade adulta têm antecedentes na infância desde a vida intraútero e perinatal. A compreensão dos diagnósticos de alto risco e eventos que ocorrem na infância pode contribuir para a identificação e intervenção preventiva nos indivíduos de maior risco de desenvolver DRC durante a vida.

Entre as causas de DRC de início precoce temos: anomalias congênitas dos rins e trato urinário (CAKUT), doença glomerular, doenças císticas renais, síndrome hemolítico urêmica e insuficiência renal isquêmica. Os fatores genéticos bem como os fatores ambientais capazes de modificar a expressão gênica (epigenética) estão envolvidos na gênese da DRC precoce ou do adulto, sendo assim programas de testes genéticos teriam o potencial de estabelecer a causa da DRC muito antes do desenvolvimento de sintomas graves, estabelecendo a chamada “medicina de precisão”. No entanto, o custo ainda é uma barreira a ser vencida, bem como a correta intepretação de achados que podem ser incidentais, além de outros aspectos.

Os fatores perinatais já vêm sendo estudados desde os anos 80, relacionando desnutrição intrauterina e consequente baixo peso ao nascer (BPN), ao aparecimento de DM tipo 2, HAS, dislipidemias e doença cardiovascular na vida adulta. Outros autores demonstraram as implicações renais de BPN e da prematuridade havendo forte associação com DRC em estudos de coortes de nascimentos, fato relacionado a baixa massa de néfrons decorrente tanto da nefrogênese incompleta quanto da desnutrição intraútero.

É muito importante que esses pacientes sejam acompanhados em longo prazo, visando à monitorização da função renal e da pressão arterial e à instituição de medidas preventivas de novas lesões renais. Isso é um papel fundamental do pediatra. É importante ressaltar que o recém-nascido prematuro é também mais susceptível a lesão renal aguda devido à baixa taxa de filtração glomerular (TFG), autorregulação renal prejudicada, imaturidade tubular, exposição a nefrotoxinas (gentamicina, indometacina, ibuprofeno), risco de nefrocalcinose pela alta excreção de cálcio associada a uso de furosemida, uso prolongado de oxigênio, doença renovascular associada à complicação de cateterismo umbilical e nutrição parenteral.

As principais doenças renais na infância são CAKUT, doenças glomerulares e as condições císticas renais. As anomalias congênitas, que mesmo com função renal normal na infância, estão associadas a riscos futuros para DRC são rim único, válvula de uretra posterior e hipoplasia renal. Entre as doenças glomerulares a maioria tem prognóstico favorável, no entanto até 21% das glomerulonefrites e 2,6% das síndromes nefróticas (SN) apresentam anormalidades urinárias persistentes e HAS, sendo os casos de SN corticorresistente aqueles com maior risco de DRC. A história prévia de doença glomerular na infância aumenta o risco de DRCT. O início precoce de inibidores da enzima conversora de angiotensina tem efeito protetor.

Há poucas informações disponíveis sobre o curso natural da progressão da DRC em crianças com condições crônicas, mas sabemos que obesidade, DM e HAS produzem efeitos deletérios durante a infância e risco significativo para a DRC na idade adulta. Estudos associam obesidade à redução da TFG , albuminúria e DRC. A HAS na infância está relacionada à HAS e DRC no adulto. O controle rigoroso da pressão arterial retarda a progressão da DRC nas doenças renais. Alguns estudos mostram que dislipidemia isolada é fator de risco independente de DRC. Nos pacientes com DM tipo 1 a nefropatia diabética com evolução para DRCT é a principal causa de morbimortalidade precoce, sendo fundamental o controle glicêmico rigoroso.

Os fatores associados ao estilo de vida podem constituir risco ou efeito protetor para a DRC.  A atividade física reduz a morbimortalidade na DRC e seu efeito protetor pode atrasar ou até impedir o desenvolvimento de DRC futura. A dieta com excesso de sal leva a aumento da pressão arterial, albuminúria e aumento da fração de filtração. O sal pode iniciar e propagar lesão renal, sendo assim sua redução consta de algumas diretrizes para prevenção da DRC. Já a redução da ingestão de proteínas na dieta de crianças com DRC não tem um efeito significativo na progressão da doença renal, as restrições são impostas somente quando são claramente necessárias.

Exposições relacionadas ao status socioeconômico durante a infância são poderosos preditores de morbimortalidade por DRC em adultos, sendo as populações negras desproporcionalmente desfavorecidas, com diagnóstico mais tardio e já em DRCT. Nos países menos desenvolvidos as incidências de DRC são menores e o diagnóstico é feito já na fase terminal, havendo um maior percentual de DRCT sem diagnóstico (32% das crianças no Brasil).

Possíveis intervenções precoces que podem reduzir o risco de DRC e suas sequelas:

1) Triagem com exame de urina simples para todas as crianças nas consultas de rotina. Essa medida é adotada em países como Japão, já a Academia Americana de Pediatria (AAP) não realiza tal screening, considerando a relação custo-benefício desfavorável.

2) Adesão às diretrizes da AAP e SBP para medições da PA durante consultas de rotina de todas as crianças acima de 3 anos.

3) Acompanhamento nefrológico para populações pediátricas específicas em risco, como bebês prematuros, crianças com câncer, doença cardíaca congênita e outros grupos de risco.

4) Transição do acompanhamento nefrológico da infância até a idade adulta.

5) Desenvolvimento da quantificação da reserva funcional renal por métodos que podem ser facilmente utilizados na prática clínica. Atualmente os mais utilizados são a dosagem da creatinina sérica, o clearance de creatinina para crianças com controle miccional, pois depende da coleta da urina de 24h e o clearance de creatinina estimado pela fórmula de Schwartz. A creatinina não é o melhor indicador da função renal, sendo superada pela cistatina C, que não é disponível na maioria dos serviços públicos.

6) Triagem genética de rotina para recém-nascidos com sequenciamento de última geração para identificação precoce de alterações relacionadas a doenças renais mais tarde na vida. Ainda não é realidade na prática médica.

Um estudo brasileiro de 2019 liderado pelo Dr. Paulo Koch propôs uma triagem baseada em perguntas feitas aos responsáveis de pacientes com e sem DRC, encontrando nove questões que mostraram forte associação com a presença de DRC. São elas: Ultrassonografia pré-natal com anormalidade do trato urinário, história de infecção do trato urinário de repetição, história de interrupção do crescimento, sendo esses 3 considerados critérios maiores. Os demais, considerados critérios menores, foram: história de hipertensão arterial, história de jato urinário anormal, história de espuma na urina, poliúria, noctúria, história de edema de face ou de membros inferiores. Quando o paciente apresentava 2 maiores ou 1 maior e 2 menores, ou ainda 3 menores havia mais de 90% de chance de DRC. Essas questões poderiam ser facilmente incorporadas às anamneses de rotina de todos os pacientes pediátricos em consultas de rotina, contribuindo para diagnóstico precoce e instituição de tratamento conservador da DRC, bem como para prevenção de lesões renais adicionais a pacientes acometidos em estágios iniciais.

Autora: Dra. Luciana Cabral Matulevic

Médica Preceptora UFRJ Macaé. Nefrologista Pediátrica. Membro Departamento de Nefrologia – SOPERJ.

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