PALAVRA DO PRESIDENTE BOLETIM DE AGOSTO 2020

“No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá, onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não Funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz De fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.” Manoel de Barros Definitivamente 2020 entrará para a história como o ano da pandemia de COVID-19.
Todos nós sofremos, em maior ou menor intensidade, com as perdas de familiares ou amigos em nossas vidas. Na área da saúde não foi diferente, perdemos dezenas de colegas que estavam na linha de frente do combate ao novo coronavírus dentro dos hospitais. Lamentamos profundamente cada uma das vidas perdidas. Agora é o momento de confiar na Ciência e acreditar que muito em breve venceremos este triste momento vivido por toda a humanidade. Apesar de tudo que estamos passando, não podemos desviar nosso olhar de outras questões importantes que estão acontecendo, pois, como dizia o poeta, o tempo não para. No dia 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos. Não podemos deixar de ressaltar que cuidados relativos à saúde de crianças e adolescentes que hoje parecem triviais, principalmente para os pediatras mais jovens, se tornaram realidade graças à implementação do ECA.
Podemos citar aqui alguns deles: atendimentos gratuitos à gestante durante o pré-natal com o registro civil obrigatório do recém-nato; alojamento conjunto; amamentação; vacinações; acesso gratuito e universal às ações e aos serviços de saúde, odontologia, tratamentos clínicos, cirúrgicos ou complexos e os atendimentos específicos às deficiências e hospitalizações pelo Sistema Único de Saúde; o acompanhamento de um dos pais em tempo integral durante todo o tempo de hospitalização; além da notificação compulsória de suspeitas da violência e muitas outras medidas de proteção e políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos de saúde.
Com a Lei 8.069 de 1990, crianças e adolescentes passaram a ser vistos sob nova perspectiva, como “sujeitos de direitos”. Desde lá, há trinta anos, novos rumos foram tomados para garantir a proteção de meninos e meninas de zero a 18 anos. De acordo com o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Entre os avanços que o ECA trouxe para o país, está a redução da mortalidade infantil. O Brasil conseguiu reduzir em 24% as mortes de crianças antes de 1 ano de idade, em 2015. Levantamento feito pelo UNICEF, com base em dados do Ministério da Saúde, mostra que a taxa passou de 50 para cada mil crianças nascidas vivas, no final da década de 1990, para 12. O número se aproxima do previsto pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que são 10 mortes para cada mil nascimentos.
Recentemente a Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro se pronunciou – e lamentou profundamente – sobre o caso de uma menina de 10 anos que foi submetida à violência sexual e psicológica dentro do seu próprio núcleo familiar. Entendemos que quando uma menina de 10 anos sofre violência sexual durante quatro anos, com o agravante de que esse ato tenha sido praticado continuamente por um membro da família, no caso um tio, e dele engravida, estamos diante de um caso de extrapolação gravíssima dos direitos de uma criança.
A SOPERJ entende que a família, a comunidade e a sociedade falharam na proteção a essa criança.
Em casos como o ocorrido com essa menina, a Justiça determina – baseada na Lei do Aborto no país e observando o desejo da criança – a interrupção imediata da gestação, visando ao bem-estar físico e mental da vítima. Após muita exposição, essa menina teve seus direitos assegurados e a gravidez foi interrompida.
Como uma entidade que prima pela saúde e bem-estar de crianças e adolescentes, a SOPERJ ressalta que, embora o número de gravidez na adolescência venha diminuindo no Brasil, na faixa etária entre 10 e 14 anos os casos de meninas grávidas estão aumentando, principalmente no Norte e Nordeste. Muitas dessas gravidezes ocorrem devido a abuso sexual.
É importante relembrar que pelas leis brasileiras relação sexual com menores de 14 anos é considerada estupro de vulnerável. A SOPERJ espera que, após o procedimento, essa menina receba todo apoio necessário, além de suporte psicológico e de proteção a sua integridade física, para que um dia consiga superar esse trauma inaceitável pelo qual passou desde os seis anos de idade.
Seguimos as diretrizes sugeridas pela Sociedade Brasileira de Pediatria em sua nota sobre o assunto: “Os pediatras têm marcado, na trajetória de sua entidade nacional, uma história de luta em defesa dos direitos. Desse modo, estes médicos especialistas não se calarão diante de dramas e permanecerão exigindo a efetiva implementação de políticas de prevenção à violência sexual na infância e na adolescência, com ações articuladas entre educação, saúde, segurança e assistência social”.