Anglicismos

Como vai, tudo well? Vou bem, thanks. E your família?

Esse dialeto estranho – uma espécie de português salpicado com termos inesperados em inglês– parece ter sido eleito a língua oficial de um recente congresso médico brasileiro. Vários palestrantes, médicos de renome, decidiram que seria razoável ou até mesmo recomendável inserir um grande número de palavras em inglês nas apresentações. O resultado foi uma sensação incômoda e o desvio da atenção da plateia para a forma em detrimento do conteúdo das palestras.

Imagine-se no aconchego de um auditório pouco iluminado: a poltrona é confortável e o(a) convida para fechar os olhos e relaxar, mas você não pagou caro para cochilar em público. Então, lança mão de toda a função executiva que Deus lhe deu a fim de captar a essência das aulas quando, de repente, o palestrante arremessa sobre sua cabeça: “Podemos caracterizar esta síndrome como uma channelopathy”. Não sei como a sua mente receberia tal palavra intrusa, mas eu me torturei com uma dúvida insolúvel — por que esse gênio preferiu channelopathy a ‘canalopatia’? Confesso que gerei algumas hipóteses muito pouco abonadoras à reputação do palestrante na tentativa de sanar a dúvida. Por um segundo, lembrei-me com nostalgia do Projeto de Lei (PL) do então deputado Aldo Rebelo, que estabelecia a proibição do uso de quaisquer palavras estrangeiras em nosso idioma.

O PL do ilustre parlamentar não logrou êxito, felizmente, mas produziu uma resposta devastadora de Millôr Fernandes, cujo português era impecável. Este chamou a iniciativa do deputado de ‘idioletice’. Se tivesse aberto um dicionário, Rebelo saberia que ‘idioleto’ é o sistema linguístico de um único indivíduo, logo Millôr, original como sempre, criou um neologismo. Decerto sobrecarregado com o trabalho exaustivo do Congresso, o deputado acreditou ter lido ‘idiotice’ e processou o jornalista, que foi inocentado. Moral da história: a falta que um dicionário faz!

É fato que alguns anglicismos estão consagrados pelo tempo, como know-how, software, shopping center e, na área médica, rash, shunt e turnover. Outros, de uso muito frequente, foram aportuguesados, como ‘futebol’. Um bom exemplo médico é ‘BERA’, sigla de ‘Potenciais Evocados Auditivos do Tronco Encefálico’. A repetição com pronúncia correta da sigla em inglês BEAR levou à grafia atual, que reflete fielmente os fonemas brasileiros. Aliás, ‘forró’ provém de ‘forrobodó’, não da expressão for all — para minha decepção.

O hábito de citar termos técnicos em inglês durante aulas ou palestras é antigo. Seus adeptos provavelmente acreditam que é uma demonstração de estudo e erudição. Porém, meu argumento é simples: se a prioridade do palestrante for divulgar o conhecimento, ele(a) deveria esforçar-se para evitar o excesso de anglicismos, pela simples razão de que eles confundem e até anulam as chances de aprendizado de boa parcela da plateia.

Sem querer podar ou censurar os mecanismos complexos e incontroláveis que aperfeiçoam — vá lá, nem sempre — “a mais gigantesca e variada invenção humana” (olhem o Millôr aqui de novo), proponho uma defesa enfática da pátria escrita e falada, não apenas porque a flor do Lácio é de uma beleza incomparável, mas sobretudo, porque aquela língua híbrida dificulta a compreensão, pois exige um esforço cerebral desnecessário que seria mais bem aplicado em outras sinapses, if you will.